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'Jogados às traças': sem ajuda, Celina de Xangô cogita fechar centro afro

Mãe Celina de Xangô - Divulgação
Mãe Celina de Xangô Imagem: Divulgação

Lia Hama

Colaboração para o UOL, em São Paulo

28/06/2020 04h00

Aos 56 anos, Celina Rodrigues, mais conhecida como Mãe Celina de Xangô, tem sua trajetória diretamente ligada à região do Cais do Valongo, na zona portuária do Rio. Ao lado do sítio arqueológico de um dos principais portos de entrada de africanos escravizados nas Américas, ela mantém —sem recursos de governos— o Centro Cultural Pequena África, que resgata e difunde a história e a cultura afro-brasileiras.

Com a pandemia da covid-19, a ONG sediada na Casa da Guarda, no Jardim Suspenso do Valongo, teve que fechar as portas para visitação. Segundo Mãe Celina, a região foi ocupada por moradores de rua, teve as portas arrombadas e corre o risco de fechar definitivamente por falta de recursos. "Estamos vendo um trabalho de mais de dez anos ser destruído", lamenta.

Construído a partir de 1831, o Cais do Valongo foi redescoberto durante os trabalhos de escavação para a revitalização da zona portuária, em 2011. Na ocasião, arqueólogos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) pediram ajuda à mãe de santo para identificar objetos de culto religioso —como búzios, pedras e amuletos. Desde então, a yalorixá mudou-se de São Gonçalo, na Grande Rio, para a região e instalou o centro cultural no espaço cedido pela prefeitura.

Em entrevista ao UOL, Mãe Celina falou também sobre ataques a centros religiosos de matriz africana e fez críticas ao governo Jair Bolsonaro que, segundo ela, "até hoje não fez nada" em relação às políticas de promoção da igualdade racial. Leia a seguir:

UOL - Como está a situação do Centro Cultural Pequena África?

Mãe Celina de Xangô - A situação já era difícil e, com a pandemia, piorou. Você chega lá e não consegue entrar porque os moradores de rua ocuparam o jardim. Em março, arrombaram a casa, tive que trocar as fechaduras. Isso acontece quase todo mês.

Não tem segurança, não tem policiamento. Antes os visitantes chegavam e ficavam encantados com aquele jardim maravilhoso. Hoje não tem nada de maravilhoso, está tudo deteriorado, quase tão ruim como antes da revitalização. As plantas foram arrancadas, os muros, pichados, o mato está sem cortar. Estamos jogados às traças.

Centro Cultural Pequena África, no Cais do Valongo (RJ) - Reprodução - Reprodução
Centro Cultural Pequena África, no Cais do Valongo (RJ)
Imagem: Reprodução

UOL - Qual a importância de espaços de memória negra como esse?

Mãe Celina de Xangô - O Centro Cultural Pequena África tem visibilidade internacional, principalmente na Europa, e recebe muita gente de fora, além de grupos de estudantes.

Tivemos todo cuidado na promoção de um circuito histórico e arqueológico da herança africana na região e hoje estamos vendo um trabalho de mais de dez anos ser destruído.

Outros espaços vizinhos —o Instituto dos Pretos Novos e a Casa da Tia Ciata— estão fazendo vaquinha para se manter. É muito dolorido para uma mulher negra, mãe de santo e ativista, como eu, ver isso acontecer.

UOL - Como o centro se sustenta?

Mãe Celina de Xangô - A prefeitura cedeu o espaço, mas pago as contas com meus recursos. Quando fui para lá, em 2015, tinha dois jardineiros e dois seguranças. O prefeito era o Eduardo Paes. Ele saiu, o [Marcelo] Crivella entrou e tirou tudo. Não tenho ajuda de custo nem para as viagens. Já fui sete vezes divulgar o Cais do Valongo na Europa e o governo não apoia em nada.

Se continuar assim, vou entregar o espaço, porque não estou dando conta. Vivo dos atendimentos que faço como mãe de santo e de um cartão alimentação de R$ 100 por mês. Sou princesa, mas não tenho dinheiro.

UOL - Como você recebeu o título de princesa no Benim?

Mãe Celina de Xangô - Em 2012, a gente fez uma grande celebração no Cais do Valongo, com a descoberta e a revitalização da região. Havia outras mães de santo, eu era a mais jovem. Uma foto minha foi parar no centro de turismo do vilarejo de Uidá [região conhecida pelos descendentes de escravizados que retornaram do Brasil para a África], em Benim. Em 2016, fui convidada pelo governo do Benim para visitar o país. O ministro da Cultura e do Turismo queria saber da história da mãe de santo que tinha um projeto de construção de um memorial da diáspora africana no Rio.

Nas minhas andanças por lá, conheci o templo vodu dos meus ancestrais. Quando cheguei, o rei falou que eu não precisava fazer exame de sangue, que por ali os meus ancestrais tinham passado. Aí ganhei o título de princesa da corte real de Kpassenon, que é a família fundadora de Uidá. Foi em reconhecimento ao meu trabalho.

UOL - Que avaliação faz do governo de Jair Bolsonaro em relação às políticas de promoção de igualdade racial?

Vou ser bem sincera. Você está falando com uma mãe de santo que é otimista ao extremo, que tem fé, mas estou muito descrente. Até hoje esse governo não fez nada. Não tem programa de governo. E ainda botam esse homem [Sérgio Camargo] para presidir a Fundação Palmares. Se ele acha que o povo preto é escória, o que está fazendo ali então? É muita maldade com a gente.

UOL - Os ataques a terreiros têm crescido nos últimos anos. A que você atribui esse aumento da intolerância religiosa?

Mãe Celina de Xangô - O culto de matriz africana ganhou uma força muito grande a partir do momento em que nós, lideranças dos terreiros, começamos a ter posicionamentos políticos. Houve um fortalecimento do axé e de quem vai aos terreiros. O terreiro dá força para seus filhos alcançarem seus objetivos e isso incomoda. Por isso os ataques.

Mãe Celina de Xangô ministra oficia de ervas - Reprodução - Reprodução
Mãe Celina de Xangô ministra oficia de ervas
Imagem: Reprodução

UOL - Muitas vezes esses ataques são feitos por grupos evangélicos. Qual a motivação?

Mãe Celina de Xangô - Eles se sentem incomodados. A maioria dos terreiros atacados é de mulheres. O terreiro não é só terreiro, é centro cultural, é creche. A gente dá aulas, faz oficinas. A mãe vai trabalhar e deixa o filho no terreiro, nós tomamos conta dele. Então, para certas pessoas, isso é uma afronta. Eles pensam: "Como é que uma macumbeira cuida das pessoas desse jeito?". Não aceitam.

UOL - Milhares de pessoas saíram às ruas para protestar nos EUA e em outros países após o assassinato de um homem negro —George Floyd— por um policial branco. Esses assassinatos são frequentes nas favelas cariocas, mas não provocam tanta indignação. Por quê?

Mãe Celina de Xangô - O que me deixa mais indignada é que, depois da Nigéria, o Brasil é o segundo país com a maior população negra do mundo e tem esse ódio exacerbado, essa coisa nojenta do racismo, que a cada dia só aumenta. A minha indignação é essa.

Os Estados Unidos não têm tanta população negra como nós temos aqui. Lá não chega nem a 15% da população total. E nossa população negra está sendo morta por preto. A nossa PM é preta. Já parou para pensar nisso?

UOL Protestos contra o racismo feitos por redes sociais, como o Blackout Tuesday, adiantam alguma coisa?

Mãe Celina de Xangô - Acredito que não. Precisamos de ações mais concretas. Eu penso que o primeiro passo é a gente ter uma liderança forte. O povo preto não tem uma liderança forte. Cadê o movimento negro se manifestando contra o Sérgio Camargo?

UOL - Qual o principal legado dos africanos no Brasil?

Mãe Celina de Xangô - A gente está falando da entrada de milhões de africanos que construíram a cidade do Rio de Janeiro e esse país. Que trouxeram alegria para o povo brasileiro. Tá todo mundo ferrado, mas a gente tem alegria de viver. Você já esteve na África? No dia em que você for, vai sentir que está no Brasil. Em agosto vai ter uma festa celebrando os 200 anos do retorno dos agudás [descendentes de escravizados africanos que deixaram o Brasil e retornaram ao Benim]. Em Uidá tem uma comunidade de origem brasileira. Você encontra sobrenomes como Rodrigues, Souza, Santos, Albuquerque, Oliveira, Almeida. Eu estaria lá na celebração, mas, por causa da covid-19, infelizmente não poderei ir. Quando puder, quero voltar.