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Policiais são investigados por extorquir dinheiro de filho de traficante

3.jun.2020 - Carro de luxo apreendido em operação da Polícia Civil de Guarulhos contra lavagem de dinheiro - Rômulo Magalhães/Futura Press/Estadão Conteúdo
3.jun.2020 - Carro de luxo apreendido em operação da Polícia Civil de Guarulhos contra lavagem de dinheiro Imagem: Rômulo Magalhães/Futura Press/Estadão Conteúdo

Josmar Jozino

Colaboração para o UOL, em São Paulo

04/07/2020 09h48

A Corregedoria da Polícia Civil investiga quatro policiais de Guarulhos, na Grande São Paulo, acusados de extorquir Gabriel Donadon, 24 anos, filho de Anderson Lacerda Pereira, um dos maiores narcotraficantes do país, ligado ao PCC (Primeiro Comando da Capital), suspeito de envolvimento com a máfia italiana Ndrangheta e procurado pela Interpol.

Gabriel Donadon foi à Corregedoria em 16 de fevereiro deste ano denunciar que teve de pagar R$ 400 mil em espécie e dar uma Land Rover aos investigadores após ser detido por eles uma semana antes em Mogi das Cruzes, Grande São Paulo. Os policiais, a princípio, queriam R$ 5 milhões e teriam alegado que a quantia exigida seria por causa de "pendência de valores" do pai dele.

Pereira, foragido da Justiça, responde a inquérito no 4º Distrito Policial de Guarulhos por lavagem de dinheiro. Ele é acusado de ter montado, com dinheiro do tráfico de drogas, 38 clínicas médicas e odontológicas e uma empresa de limpeza na Grande São Paulo, além de ter adquirido 15 casas em um condomínio de luxo em Arujá, também na região metropolitana.

O delegado Evandro Lopes Salgado, da Divisão de Crimes Funcionais da Corregedoria, investiga a denúncia, mas não quis se manifestar sobre o caso. Os policiais são suspeitos de praticar concussão (quando um servidor público exige para si ou outra pessoa, direta ou indiretamente, vantagem indevida). A pena para esse crime varia de dois anos a 12 anos de prisão.

As versões sobre a detenção de Gabriel Donadon são divergentes. Ele alega que foi detido em Mogi das Cruzes por três investigadores e levado para o 4º DP de Guarulhos em um carro da Polícia Civil. Segundo ele, um dos policiais dirigiu a Land Rover até a sede do distrito.

Gabriel acrescentou que na delegacia, um dos investigadores pegou um telefone celular e ligou para um policial do 1º DP de Guarulhos. Esse policial, na versão do filho do narcotraficante, conversou com ele e exigiu os R$ 5 milhões, dizendo que tratava-se da "pendência de valores" de Anderson Pereira. Gabriel ainda contou que esse policial do 1º DP de Guarulhos o conhece porque é vizinho dele em um condomínio no Arujá.

Segundo Gabriel, ele telefonou para amigos empresários, pedindo para que arrumassem o dinheiro. Gabriel afirmou que foi levado para o condomínio onde mora e, lá, na companhia de um amigo, entregou os R$ 400 mil aos policiais. O rapaz afirmou também que a Land Rover ficou com os investigadores. Há relatos de que dentro do veículo havia pen-drives.

Os investigadores têm outra versão sobre os fatos. Alegam que investigavam Anderson Pereira e apuraram que ele estaria em Mogi das Cruzes, em 9 de fevereiro deste ano, a bordo da Land Rover branca, placas OVZ-0123. Eles sustentam que fizeram diligências em Mogi, mas no local indicado encontraram Gabriel Donadon, o filho do narcotraficante.

Os policiais levaram Gabriel para o 4º DP de Guarulhos. Porém, segundo os investigadores, o rapaz escondeu pen-drives no banco de trás da viatura e o material foi achado posteriormente por um funcionário de um lava-rápido, quando o veículo policial era lavado.

Esses pen-drives só foram entregues para o delegado Fernando José Goes Santiago, do 4º DP de Guarulhos, no dia 9 de março de 2020, às 17h, um mês depois da detenção de Gabriel, como consta em boletim de ocorrência lavrado pelo próprio delegado.

O boletim de ocorrência não menciona onde os pen-drives foram encontrados e tampouco cita a detenção de Gabriel. Ao analisar os pen-drives, o delegado descobriu um sofisticado esquema de lavagem de dinheiro e ocultação de bens coordenado pelo narcotraficante Anderson Pereira.

Dois dias de ter em mãos os pen-drives, Santiago instaurou o inquérito de lavagem de dinheiro. No início de junho, a pedido do delegado, a Justiça decretou a prisão temporária de 30 dias de 22 pessoas, apontadas como testas de ferro das empresas de Anderson Pereira.

Ao menos 11 foram presas, incluindo dentistas, um médico, um ex-secretário municipal de Arujá, além da ex-mulher e da mãe de Anderson Pereira. Todos alegam que são inocentes, não integram organização criminosa e jamais fizeram lavagem de dinheiro.

Na sexta-feira (3), a Justiça prorrogou a prisão temporária por mais 30 dias para a grande maioria dos acusados. Anderson Pereira e o filho Gabriel estão, até o momento, foragidos.

Mesmo procurado pela Interpol, Anderson Pereira era visto com frequência em um condomínio do Arujá, onde tinha vizinhos policiais, e desfilava tranquilamente em carros luxuosos, cercado por seguranças, fumando charutos importados e ostentando correntes de ouro no pescoço.

Ele também gostava de exibir o livro "Rota Caipira", do jornalista e escritor Allan de Abreu, sobre o narcotráfico no Centro-Sul do Brasil. Pereira é citado na obra e sempre demonstrou ter orgulho disso.

Anderson Pereira foi condenado a sete anos por tráfico internacional de drogas. Em 2014, ele foi acusado de tentar exportar 32 kg de cocaína para mafiosos da Ndrangheta, na Calábria (Itália). A droga foi apreendida no Porto de Santos por policiais federais e seguiria para o porto de Gioia Tauro.

O caminho da Land Rover

Um documento obtido com exclusividade pelo UOL pode esclarecer se a versão de Gabriel é verossímil ou se são os investigadores do 4º DP de Guarulhos quem falam a verdade.

A Land Rover branca tinha um rastreador. A reportagem conseguiu uma planilha detalhada sobre a movimentação do veículo entre os dias 9 e 20 de fevereiro deste ano.

A documentação mostra que a Land Rover estava na rua Victório Partênio, na Vila Partênio, em Mogi das Cruzes, às 13h de 9 de fevereiro de 2020 e ficou no mesmo local até 13h47.

Às 14h35, o veículo chegou à avenida Santana do Mundau, no Parque Alvorada, onde fica o 4º Distrito Policial de Guarulhos. A Land Rover permaneceu lá até às 14h07 do dia seguinte, 10.

Às 15h36, a Land Rover é estacionada na rua Coronel Marques, na Chácara Califórnia, bairro de Vila Carrão, zona leste da capital, e ficou naquelas imediações até 12h47 do dia 15 de fevereiro.

Antes de prestar queixa na Corregedoria da Polícia Civil, Gabriel Donadon lembrou-se que a Land Rover tinha rastreador e manteve contato com a empresa responsável pelo monitoramento do veículo.

A Polícia Militar foi avisada e o veículo acabou encontrado às 21h59 na rua Ibiajara, na Parada XV de Novembro, região de Itaquera, zona leste da capital.

A Land Rover estava em posse de um instalador de acessórios de veículos que à época trabalhava em uma loja na rua Coronel Marques, na Vila Carrão, onde ela foi deixada do dia 10 ao dia 15 de fevereiro.

O instalador foi conduzido para o 63º DP (Vila Jacuí) e a ocorrência do encontro do veículo foi registrada. Ele contou que a Land Rover foi deixada na loja por um policial conhecido por Chiquinho, que tinha o hábito de levar carros lá para fazer reparos.

O depoimento dele foi confirmado ao delegado Evandro Lopes Salgado, da Corregedoria. O instalador acrescentou que foi autorizado por Chiquinho a usar o veículo para ir a uma festa de aniversário na casa de um tio dele em Itaquera. O 103º DP (Cohab 2) abriu inquérito para apurar como e quem levou a Land Rover do 4º DP de Guarulhos para a oficina da Vila Carrão.

A reportagem procurou a Secretaria Estadual da Segurança Pública para saber se o 4º DP de Guarulhos registrou boletim de ocorrência sobre a detenção de Gabriel e a apreensão da Land Rover no dia 9 de fevereiro. Também foi perguntado à pasta por que o boletim de ocorrência sobre o encontro dos pen-drives só foi registrado um mês depois da detenção de Gabriel.

A reportagem questionou ainda se, nesses quatro meses de investigação sobre a denúncia de concussão envolvendo os investigadores de Guarulhos, a Corregedoria já apurou se a versão de Gabriel Donadon é verdadeira ou se ele cometeu falsa comunicação de crime.

Foi indagado ainda à SSP se o inquérito aberto no 103º DP já esclareceu quem levou a Land Rover branca para a oficina na Vila Carrão e se o policial Chiquinho existe mesmo e se já foi identificado.

A reportagem não teve resposta para nenhuma dessas perguntas. A assessoria de imprensa da SSP divulgou nota informando que "todas as circunstâncias relativas aos fatos são investigadas por meio de inquérito policial instaurado pela Corregedoria da Polícia Civil e que os agentes em questão seguem trabalhando normalmente durante os trâmites da investigação".

Ouça também o podcast Ficha Criminal, com as histórias dos criminosos que marcaram época no Brasil. Esse e outros podcasts do UOL estão disponíveis em uol.com.br/podcasts, no Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e outras plataformas de áudio.