Mulher em condição análoga à escravidão falava com vizinhos por bilhetes
Os três anos em que frequentou a escola ajudaram a colocar um fim nas quase quatro décadas de regime análogo à escravidão a que Madalena Gordiano, 47, foi submetida em Minas Gerais. Os bilhetes que ela escreveu para vizinhos com o básico de escrita e leitura que aprendeu foram a base da denúncia sobre a situação de Madalena feita pelo MPT (Ministério Público do Trabalho).
Proibida de estudar pelos patrões, Madalena viveu 38 anos sob custódia da família Milagres Rigueira — primeiro nas cidades de São Miguel do Anta e Viçosa, por 24 anos, e depois em Patos de Minas, onde morou os últimos 14 anos.
Madalena, que nunca recebeu salário e foi privada de ir para escola, teve sua história revelada no domingo passado (20) pelo programa "Fantástico", da TV Globo.
Em liberdade desde o fim de novembro deste ano, ela foi retirada da casa do professor universitário Dalton César Milagres Rigueira após denúncias de vizinhos. Durante todo o tempo em que prestou serviços à família, Madalena viveu uma rotina de total precariedade, aponta o inquérito em andamento.
Nos últimos dois anos, Madalena começou a escrever recados para vizinhos, amigos da igreja e comerciantes do bairro. O conhecimento básico do português foi suficiente para externar sua angústia aos que se sentia mais próxima.
A reportagem teve acesso a 15 bilhetes escritos por Madalena desde 2018. Em alguns, ela pede dinheiro, entre R$ 5 e R$ 20 para comprar produtos de limpeza, em outros, itens básicos de higiene, como sabonete, que não eram oferecidos pela família de Dalton Cesar Milagres Rigueira.
Segundo vizinhos, a mulher de Dalton, Valdirene Lopes Rigueira, reclamava da quantidade de material usado por Madalena nos cuidados da casa.
Com medo de que os patrões descobrissem os pedidos de ajuda, ela articulava algumas táticas para obter o dinheiro. Nos recados, pedia para colocar as notas ou produtos debaixo do tapete ou em sacolas para que ela pudesse pegar no início do dia já que começava a trabalhar às 4h, horário em que os patrões estavam dormindo.
Em um dos bilhetes, Madalena não fez nenhum pedido, apenas agradeceu. Disse que "tudo que faz com carinho a gente recebe em dobro. Tudo eu peço e (você) me atende". Neste mesmo recado, ofereceu uma oração à amiga. Ao final do texto, Madalena pede sigilo nas trocas de mensagens. "Não toca no assunto. Só entre eu e você, nem que eu moro com eles [família Milagres Rigueira], povo da casa", escreveu.
Segundo os vizinhos com quem o UOL conversou, além de produtos de higiene pessoal, o dinheiro que recebia dos vizinhos, servia para a compra de comida, já que a alimentação era regrada, principalmente quando a família viajava e a deixava sozinha no apartamento.
Hoje Madalena finalmente tem liberdade e dinheiro para fazer suas compras com os cerca de R$ 8 mil da pensão a que tem direito desde 2003, mas que, segundo o MPT, ficava nas mãos dos patrões —embora Dalton tenha dito em depoimento que repassava a ela e entregava o valor integral.
Aos 27 anos de idade, Madalena se casou com Marino Lopes da Costa, de 78 anos, tio da patroa Valdirene, apesar de jamais ter tido relação com o marido. Dois anos depois, Marino, ex-combatente de guerra, morreu, e Madalena passou a receber uma pensão,
Questionado pela reportagem do UOL, o advogado de Dalton e família não se posicionou sobre as denúncias e disse que ainda não teve acesso aos autos do processo. O advogado disse que Dalton e os familiares "estão abalados pelo acontecimento e preferem se manter em silêncio".
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