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'Tentaram me matar', diz vendedor de açaí agredido por policiais em SP

Anahi Martinho

Colaboração para o UOL, em São Paulo

23/01/2021 04h00

O vendedor ambulante Jeová de Oliveira Lima, 48, se diz um sobrevivente. Ele foi agredido por ao menos cinco policiais que tentavam imobilizá-lo na rua Direita, na Sé, região central de São Paulo.

O ambulante e sua mulher, Blanca Medina, afirmam que estavam voltando para casa quando foram abordados por fiscais da prefeitura em uma ação de apreensão de mercadorias —o chamado "rapa".

As agressões começaram após o vendedor quebrar o para-brisa de uma das peruas dos fiscais. Imediatamente, foi contido por policiais, que o derrubaram no chão e passaram a pressionar seu pescoço, até que ele perdesse os sentidos.

Ele admite ter danificado o carro da prefeitura. Diz que "perdeu a cabeça" quando viu os fiscais levando toda a sua mercadoria e o triciclo usado para vender açaí.

Para a PM, a ação foi legítima, porque houve dano a patrimônio público e violência contra um fiscal (leia mais abaixo).

Eles tentaram me matar. Eu ia ser assassinado aqui mesmo. Por um triz não ceifaram minha vida, agradeço muito a Deus.
Jeová de Oliveira Lima, vendedor ambulante

Um vídeo feito por Blanca e por outros transeuntes mostra Jeová, que é hipertenso, perdendo a consciência e ficando com olhos e boca entreabertos após as agressões.

"Ele [um policial] colocou o joelho no meu pescoço, daí minha mulher empurrou a perna dele. Aí ele forçou o cassetete no meu pescoço com todo o peso do corpo. Senti meu olho virar e fiquei desacordado. Não sei quanto tempo fiquei assim, se foram minutos, segundos", relatou Jeová ao UOL.

Após recuperar os sentidos, não foi levado ao pronto-socorro. Foi algemado e encaminhado ao 1º DP, onde foi fichado por "dano, resistência e desobediência".

Casal tem autorização para vender na rua

O casal é licenciado para comercializar seus produtos na avenida São João, 250. Eles afirmam que, no dia da agressão, estavam apenas de passagem pela rua Direita, voltando para casa. Os dois moram em uma ocupação na rua Quintino Bocaiúva.

"Nesse dia estava chovendo e a venda estava fraca. Decidimos voltar para casa e, quando passávamos aqui pela rua, uma mocinha pediu um açaí. Fui tirar, e nessa hora eles chegaram falando que iam levar todas as nossas coisas", conta Blanca, que trabalha como camelô há cinco anos com o marido.

A gente estava com a licença. Eu ando com ela plastificada e pendurada no carrinho. Eles não quiseram nem saber.
Blanca Medina, vendedora ambulante

O investimento total dos bens apreendidos passa de R$ 3.000 —R$ 1.900 só do valor pago pelo triciclo. Para tirar a licença de camelô, o casal investiu R$ 420.

Eu perdi a cabeça, acabei surtando. É a única coisa que eu tenho. Além disso, só tenho Deus, o dia e a noite. Chegamos no ponto às 7h e só vamos embora às 16h. Depois, vamos no Mercadão comprar os produtos. À noite, a gente fica fatiando melancia, abacaxi, preparando a salada de frutas. Ficamos até as 3h trabalhando. Eu escolho as melhores frutas para vender aos meus clientes.
Jeová de Oliveira Lima, vendedor ambulante

PM diz que "ação foi legítima"

Jeová e Blanca, que é paraguaia, se conheceram na ocupação e são casados há 12 anos. Juntos, criam quatro filhos. Dona dos gritos desesperados que aparecem no vídeo, ela pensou que perderia o marido naquele dia.

"Quando o policial apertou o cassetete no pescoço dele, eu pensei que ele tinha partido. Minha filha se aproximou em desespero. Um deles apontou a arma para ela e disse: 'Se afasta'. Eu acho isso absurdo. Precisa apontar a arma para uma menina de 16 anos?"

Procurada pelo UOL, a PM classificou a ação como "legítima". "A PM analisou todas as imagens, também de outros vídeos, que mostram a ação por várias perspectivas, inclusive do vídeo que flagrou o momento em que o ambulante quebra o vidro do veículo municipal, portanto a Polícia Militar considera a ação legítima."

A corporação enviou um vídeo à reportagem em que é possível ver Jeová quebrando o para-brisa de um veículo e correndo para danificar o de outro. As imagens também mostram quando entre quatro e cinco policiais correm para imobilizar o homem. Depois disso, o autor das imagens desvia a câmera para filmar transeuntes, enquanto repete que o vendedor agrediu fiscais.

"Eles fizeram uma rodinha pra ninguém ver eles me matando, pra depois falarem que eu tinha infartado. A onda agora é essa. Tá na moda enforcar o cidadão. Começou com o rapaz lá nos Estados Unidos e agora o Brasil está copiando", diz Jeová, se referindo ao caso de George Floyd. Em seguida, faz uma ressalva. "Tem muitos policiais bons, que protegem a gente. Mas esses aí, eu não sei o que passou pela cabeça deles de fazer essa maldade."

Ainda com dores na coluna, o vendedor só foi ao pronto-socorro na quinta-feira (21), quase uma semana após o ocorrido. Saiu sem ser atendido: a fila de espera era grande e havia muitas pessoas com sintomas de coronavírus. Ele comprou um remédio em spray para aliviar a dor.

Futuro melhor

Segurando uma pasta com os documentos da licença, o casal afirma que vai tentar recuperar o triciclo apreendido. Jeová, que é de Montes Claros (MG) afirma só querer um futuro melhor para os filhos. Ele agora pretende cuidar da saúde para voltar a trabalhar como camelô.

"É o único meio de trabalho que a gente tem. A gente é semianalfabeto. Eu não estudei, ela também não. Mas nossa filha de 21 anos faz faculdade de enfermagem. A outra de 16 falou que quer ser juíza, e o outro, delegado", conta Jeová, sorrindo.