"Atiravam e xingavam", conta sobrevivente 25 anos após chacina de Eldorado
Raimundo dos Santos Gouveia, 66, era um dos trabalhadores rurais sem-terra do grupo que perfilaram à frente da Polícia Militar na curva do "S" da rodovia PA-150, em Eldorado do Carajás (PA), na tarde do dia 17 de abril de 1996.
Há exatos 25 anos, o Brasil assistia ao maior massacre já ocorrido no campo do país, que vitimou 21 trabalhadores (19 morreram no local e dois no hospital).
Eles atiravam e xingavam, chamavam a gente de vagabundo, diziam que iam nos matar. A gente ouvia os tiros e, ao mesmo tempo, os gritos de dor dos baleados.
Raimundo dos Santos Gouveia, sobrevivente do massacre de Eldorado do Carajás
Ele vive hoje no assentamento 17 de Abril, conquistado pela reforma agrária após a luta dos sem-terra.
As vítimas do massacre faziam uma viagem de Curionópolis (PA) com destino a Belém, onde fariam um protesto para cobrar reforma agrária da fazenda Macaxeira, ocupada em 5 de março e onde estavam acampadas cerca de 1.500 famílias sem-terra.
A lembrança da chacina naquele fim de tarde ainda marca Gouveia. Ele se lembra bem dos fatos que antecederam a ação policial. "Nós paramos para descansar naquela noite. No outro dia, chegou a notícia de que comandantes da PM iriam negociar com a gente e parecia que ia ser tudo bem", diz.
No meio da tarde do dia do massacre, o trabalhador conta que chegaram dois ônibus com policiais para a ação contra os sem-terra. O cenário mudaria radicalmente.
Eram um ônibus com PMs de Marabá e outro de Parauapebas. Antes disso, o major que estava lá dizia que iria negociar com a gente, mas, quando chegou o reforço da polícia, foram logo atirando bala de borracha. Depois, começaram as balas de verdade.
Raimundo dos Santos Gouveia, sobrevivente do massacre de Eldorado do Carajás
A ação da PM contou 155 policiais, que receberam ordens do governador Almir Gabriel (à época do PSDB) para desobstruir a rodovia. Já o grupo de sem-terra era composto por 1.100 trabalhadores rurais. Nenhum policial ficou ferido.
A cena que mais marca o trabalhador rural é o tiro que atingiu o peito de Lourival Santana.
Quando vi, ele tinha levado um tiro e caiu ali perto do meu pé. Ele morreu na mesma hora. Percebi que eles estavam lá para nos matar, não para nos tirar [da rodovia]. Peguei minha mulher e os cinco filhos e corri para dentro do mato, senão teria morrido também.
Raimundo dos Santos Gouveia, sobrevivente do massacre de Eldorado do Carajás
Além dos sem-terra mortos a tiros, a perícia apontou que muitos trabalhadores foram assassinados com os seus próprios instrumentos de trabalho.
Fuga ou luta?
Raimundo é casado há 42 anos com Maria dos Santos, que estava com ele naquela fatídica tarde. Eles têm seis filhos, dois deles moram no assentamento. "Nenhum mora na mesma casa que a gente, são todos casados", conta.
Depois da tragédia, ele admite que pensou ir embora da região, com medo de novas ações violentas.
Todo mundo estava triste e pensei mesmo em ir embora, desistir. Mas depois percebi que era melhor resistir. Já tinha passado por tanta coisa, então ficamos e resistimos. Mas nunca esquecemos o que houve.
Raimundo dos Santos Gouveia, sobrevivente do massacre de Eldorado do Carajás
Hoje, a antiga fazenda Macaxeira é uma terra já desapropriada pela reforma agrária e de posse das 690 famílias que vivem no assentamento —cada uma com 25 hectares de terra para produção.
"A nossa situação, de dez anos para cá, melhorou muito. Tem a perseguição, como sempre, mas hoje é pouca. A gente se sente seguro", diz o trabalhador, que preside a associação de moradores do local. "Eu e a turma aqui produzimos principalmente mandioca e milho e criamos gado leiteiro", completa.
Apesar de viver em uma situação de segurança no local, Raimundo é integrante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e diz que a luta pela reforma agrária ainda é um desafio para o Brasil.
A minha avaliação é que sempre o sem-terra é discriminado. Nossa luta nunca parou, não sei até quando vai essa discriminação. Somos nós, trabalhadores do campo, quem botamos a comida na mesa do rico, mas o nosso direito é muito pouco.
Raimundo dos Santos Gouveia, sobrevivente do massacre de Eldorado do Carajás
Os desdobramentos
Dos 154 policiais denunciados pelo Ministério Público do Pará (um morreu antes disso) por conta da chacina, apenas dois foram condenados, em um segundo julgamento em 2002. Foram condenados por homicídio doloso a mais de 150 anos de prisão o coronel Mário Collares Pantoja (que morreu em novembro de 2020) e o major José Maria Pereira, comandantes da operação.
Apesar da condenação, eles ficaram em liberdade por dez anos, apelando em recursos, e só foram presos em 2012, após ordem do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Pantoja, condenado a 228 anos, estava em prisão domiciliar por alegação de problema de saúde desde 2016, quando morreu. Pereira, condenado a 158 anos, continua detido.
Por conta do massacre de Eldorado do Carajás, o dia 17 de abril se tornou o Dia Mundial da Luta pela Terra. O mês de abril também demarca a jornada de lutas do MST pela reforma agrária popular, conhecida como Abril Vermelho.
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