Indígenas em Boa Vista denunciam rejeição da própria identidade
Ainda na escola, Ariene dos Santos Lima, 24, adotou o sobrenome indígena Susui. A palavra, em seu idioma ancestral Wapichana, significa "flor", o adereço que Ariene Susui mais gosta de usar e que a acompanha em suas muitas versões: jornalista, defensora da causa indígena e candidata a vereadora em Boa Vista.
Os Wapichana são a segunda etnia mais numerosa de Roraima, atrás apenas dos Macuxi, que, não por acaso, é o apelido de quem nasceu no estado. No passado, as duas etnias ultrapassaram os limites de Roraima e do Brasil, avançando Guiana adentro. Hoje, grupos Wapichana ainda vivem entre os territórios de países vizinhos.
Outros povos, como os Paraviana, acabaram aniquilados pelos primeiros colonizadores europeus. "No estado inteiro, apenas nove dos 30 povos ainda existem", relata Ananda Machado, antropóloga da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Os Paraviana, hoje, dão nome a um bairro nobre de Boa Vista.
Apesar de a primeira colonização de Roraima ter ocorrido nos anos 1700 com a construção do Forte São Joaquim, foi só na década de 1930, com a descoberta de ouro e diamantes, que houve uma grande emigração para a região. Há até um monumento em homenagem aos garimpeiros no centro da capital.
Com a colonização, os nativos foram rodeados por fazendas, muitas delas tomadas por grileiros. As comunidades que ainda existem na capital estão na zona rural do município, em uma região conhecida como Murupu, onde há 600 famílias distribuídas por cinco agrupamentos: Serra do Truaru, Anzol, Morcego, Serra da Moça e Truaru da Cabeceira.
Ariene Susui nasceu em Truaru da Cabeceira. A estrada de terra que leva à sua casa é próxima a um dos pontos turísticos mais conhecidos de Roraima, o Lago do Robertinho, a 30 minutos de carro da área urbana e bastante frequentado pela elite local.
Mas a distância que a separou do universo urbano é maior: até os 18 anos, Ariene só havia morado em Truaru e só se alimentava do que era produzido na comunidade, por meio da pesca e da agricultura familiar, e conhecia todos à sua volta. Nem sequer cogitava uma carreira após o ensino médio — seus pais só estudaram até o fundamental.
Até que uma professora da escola indígena contou sobre o Processo Específico para Indígenas (PSEI)."Foi um sonho que surgiu", recorda. Ariene conheceu os movimentos sociais indígenas e tornou-se uma ativista reconhecida como defensora da educação.
Por meio do PSEI, foi aprovada no curso de jornalismo. Para se manter, morou e trabalhou como doméstica na casa de uma família de classe média alta. "Minha mãe viveu assim aqui, e achei que essa era a única forma de viver na capital".
O estranhamento foi grande. "Em Truaru, somos uma grande família, todos te conhecem e te ajudam, temos os festejos e fazemos nossa própria comida. Aqui tu não conheces ninguém, é cada um por si. Tens que pegar ônibus, trabalhar pra comprar comida, e ela é industrializada."
Trampolim para mudança de vida
Dentro da UFRR, há o Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, com três cursos de graduação só para indígenas: licenciatura intercultural, gestão territorial indígena e gestão em saúde coletiva indígena. Também é possível fazer o PSEI ou o vestibular regular.
Para o mestrado e o doutorado, há 30 cotas para minorias distribuídas entre os 17 cursos da Universidade.
Pela primeira vez, estamos conseguindo ter indígenas doutores em Roraima. Considero nosso bloco um território indígena dentro da Universidade, onde [os alunos] conseguem falar em seus idiomas.
Ananda Machado, professora e pesquisadora do Instituto Insikiran na UFRR
Hostilidade no campus
Em alguns locais da UFRR, o ambiente é menos amistoso, pois permanece a ideia de que indígenas conseguem ingressar, mas podem não ter capacidade de aprender, conta Ananda.
A disputa pela terra também fomenta a crença de que indígenas atrapalham o desenvolvimento de Roraima, afirma Ananda. Na Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, hotel e fazendas foram desativadas nos anos 2000 para retornar aos donos originais. Na TI Yanomami, a quantidade de garimpeiros ilegais é igual à da própria população nativa.
"Eles [os indígenas habitantes de Boa Vista] têm de lidar com o desprezo de quem os considera preguiçosos e sujos: deixam de ser atendidos em restaurantes, são seguidos em mercados. Isso sem contar que muitos só têm condições de viver em bairros sem saneamento básico", afirma a antropóloga.
O preconceito faz muitos indígenas desistirem da universidade, compartilha Ariene. Primeira integrante da sua família a ter curso superior, ela vibra ao ver indígenas médicos, advogados ou músicos.
As outras pessoas ainda têm aquela visão de 1500 da gente, do 'selvagem no meio do mato'. Então é de uma relevância muito grande viver aqui no contexto urbano, concluir o ensino superior, se afirmar como indígena. A conquista de um é a conquista de todos nós".
Ariene Susui
* O fotógrafo desta reportagem, Rafael Moura Macuxi, é indígena da etnia macuxi.
* Leia a íntegra da reportagem originalmente publicada e com mapas e gráfios interativos no site da Mongabay.
* Esta reportagem faz parte do especial Indígenas nas Cidades do Brasil e recebeu financiamento do programa de jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
Mapas: Ambiental Media / Juliana Mori.
Infográficos: Ambiental Media / Laura Kurtzberg.
Pesquisa e análise de dados: Yuli Santana, Rafael Dupim e Ambiental Media.
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