'Era minha casa': Moradores narram truculência em reintegração de posse
A madrugada de 1º de julho foi a mais fria do ano em Itaguaí (RJ), com os termômetros marcando 9,9º C. Mesmo assim, cerca de 3.000 pessoas na cidade foram acordadas com jatos de água, além de tiros de borracha, spray de pimenta e gritos. Era a Polícia Militar cumprindo a determinação judicial de reintegração de posse de um terreno da Petrobras na cidade da região metropolitana do Rio.
A ocupação se chamava "Campo de Refugiados 1º de Maio", em alusão ao dia em que os primeiros chegaram ao terreno, há dois meses. Apesar do pouco tempo, moradores conseguiram organizar cozinha comunitária, sistema de reciclagem de lixo, oficinas de luta e aulas para crianças. Tinha uma espécie de creche e os moradores saíam para trabalhar —ou criaram seus próprios negócios por ali.
A Polícia Militar do Rio de Janeiro não respondeu aos questionamentos enviados pelo UOL até a publicação desta reportagem.
Após muitos trâmites judiciais, a Petrobras conseguiu que o STJ (Superior Tribunal de Justiça) concedesse o direito à reintegração. Antes, em 10 de junho, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro havia tentado uma conciliação: que as famílias saíssem de forma segura e com destino definido.
Mas não aconteceu. Ao chegar ao terreno, a PM avisou a um pequeno grupo que todos tinham 20 minutos para retirar seus pertences e sair. Alguns conseguiram pegar documentos e deixaram o local, outros, que moravam mais distante do portão, nem sequer ficaram sabendo do que estava acontecendo. Mas todos acordaram à medida que o "caveirão de água", como chamam, avançava.
A ação contraria a lei estadual 9.020/2020, que suspende "todos os mandados de reintegração de posse, imissão na posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais" enquanto durar o estado de calamidade pública causado pela covid-19. A lei entrou em vigor após a Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) derrubar veto do governador Cláudio Castro (PL).
A Associação de Magistrados do Rio de Janeiro contestou a norma, e a Justiça do Rio de Janeiro acatou, suspendendo os efeitos. Coube ao ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Ricardo Lewandowski restabelecer a lei, em dezembro de 2020.
Na última sexta, mesmo após decisão do STJ que concedia o direito à reintegração, a lei estava em vigor. Procurado pelo UOL, o tribunal também não respondeu.
"Não sei o que vai ser da gente"
Gláucia Bruzeiro, 30, acordou com os gritos. Demorou a entender o que era, mas nem teve muito tempo para assimilar: poucos minutos depois, na correria, viu seu filho, João, de 12 anos, com o rosto ensanguentado.
Sem saber se era ferimento por tiro de borracha, estilhaço ou arma de fogo, pegou o menino pelos braços e saiu pela mata rumo ao hospital para socorrê-lo. Deixou para trás sua barraquinha de açaí, de onde tirava o sustento para os dois filhos.
Ao lembrar da cena, os olhos enchem d'água. Como as centenas de pessoas abrigadas pela prefeitura, Gláucia passou a noite após a reintegração em uma escola da cidade. Recebeu alimentação, conseguiu dormir um pouco, mas descansar, não. Ela perde o sono ao lembrar que não tem para onde voltar.
"Agora eu não sei o que vai ser da gente, porque a gente já tinha nossa rotina e a expectativa de ter um lar", lamenta.
"Meu sonho acabou com essa retomada"
Foi também em busca de um lar que Lilian Maria do Nascimento, de 55 anos, chegou ao acampamento. Moradora de Salvador, na Bahia, ela chegou ao Rio de Janeiro no ano passado para trabalhar como doméstica em um condomínio de classe média alta na Barra da Tijuca. Por conta da pandemia, os patrões alegaram que não tinham como manter o salário e a demitiram.
Como morava no trabalho, Lilian não teve para onde ir e morou "de favor" na casa de uma colega durante seis meses, até saber que no acampamento poderia ter um lugar todo seu. Conseguiu um dinheiro emprestado para comprar o plástico e montar seu barraco.
Eu estava me sentindo tão bem naquele barraco, mesmo de plástico. Eu tinha meus horários, ninguém me mandava, eu não me aborrecia. Se eu quisesse limpar, eu limpava. Era minha casa, mas meu sonho acabou com essa retomada. Eles não respeitaram crianças, idosos, nada. Agora eu não sei o que vai acontecer, para onde vou. Em Salvador, os trabalhos não pagam tão bem quanto no Rio, e de qualquer forma eu preciso ter dinheiro para voltar.
Lilian Maria do Nascimento
Lilian foi levada pela assistência social de Itaguaí a uma escola com outras 90 pessoas. A reportagem foi até o local depois de receber uma denúncia de que a prefeitura e a Polícia Militar não permitiam livre trânsito dos ocupantes que foram levados para lá.
O portão estava trancado com cadeado e alguns moradores afirmaram que, no início da manhã, realmente haviam sido impedidos de sair do prédio. Apesar disso, fizeram questão de relatar que estavam sendo bem tratados, com assistência médica, alimentação e locais para dormir.
Portão fechado a cadeado
Enquanto contavam suas histórias à reportagem, eles foram orientados por funcionárias da prefeitura a não darem entrevistas. Mas decidiram falar. "É a nossa liberdade de expressão", protestou Wellington Andrade, 36.
Wellington é vendedor na praia do Recreio, zona oeste do Rio. Morador do acampamento desde o início, foi responsável por construir a estrutura da cozinha comunitária e dos locais destinados ao lazer das crianças.
Ele conta que se sentiu extremamente triste quando viu um policial lançar uma bomba dentro da creche.
Gritaram que tinha crianças perto, e ele disse que nenhum era filho dele.
Wellington Andrade
O vendedor também relata que viu um outro policial atirar, sem motivo aparente, em um outro rapaz. A bala de borracha acertou no rosto, na altura do olho. Os relatos de truculência se acumulam, e tanto Lilian quanto Wellington relatam tristeza de estar sem o seu lugar.
Sobre a proibição de sair da escola, ele até mostra o chinelo que rasgou durante a reintegração e lamenta não poder sair para comprar um novo. "Se não me deixarem voltar, o que eu faço? Eu preferia mil vezes a paz do meu barraco de plástico."
Outra moradora que relata truculência policial é Shirlen Conceição. Ela foi uma das que recebeu a Polícia Militar antes de começarem a reintegração. Ao dizer a um policial que ninguém faz uma mudança em 20 minutos, foi agredida.
Eu já estava sentada quando policiais puxaram meus braços para trás. Enquanto me agrediam, me jogaram spray de pimenta. Só não apanhei mais porque consegui correr deles.
Shirlen Conceição
Um dia após a reintegração, Shirlen era uma das moradoras mais articuladas do movimento. Após a prisão do líder, Eric Vermelho, ela organizou um grupo para ir até a frente da Delegacia de Itaguaí (50ª DP). Lá, organizou um lanche, orações e evitou tumultos.
"A gente só quer moradia, dignidade e nosso direito de ir e vir. Não queremos o mal de ninguém, causar mal a ninguém. Queremos nossos direitos garantidos, ali era um monte de família, não tinha bandido nenhum."
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