Estado do 1º governador gay declarado, RS engatinha em ações para LGBTQIA+
Ao falar abertamente a respeito de sua orientação sexual ao programa "Conversa com Bial", da TV Globo, Eduardo Leite (PSDB) se tornou o primeiro governador declaradamente gay do país.
O gesto histórico ganha peso simbólico ainda maior por se tratar de um estado muito conservador, apontam entidades gaúchas LGBTQIA+.
As instituições indicam, no entanto, que as políticas públicas para a comunidade são insuficientes, não atendem necessidades mais urgentes, são tomadas somente após muita pressão social e várias são recentes. Uma delas, inclusive, foi assinada no dia seguinte à entrevista de Leite.
A declaração dele é importante. Como é o governador do estado, trazer esse assunto à tona tem o papel de dar visibilidade ao tema. Mas a representatividade apenas não basta. A grande questão para a população LGBT no Brasil é o combate à discriminação e à miséria.
Gabriel Galli, diretor operacional da Somos
A ONG de Porto Alegre realiza ações em direitos humanos, focadas nos direitos sexuais e reprodutivos da comunidade LGBT. Para Galli, as políticas do governo de Leite, eleito em 2018, pecam pelo caráter paliativo, sendo desprovidas de um olhar mais profundo para as demandas da população LGBTQIA+.
No Sul do país, o Rio Grande do Sul é líder em mortes de pessoas LGBTQIA+ motivadas pelo preconceito. São oito registradas até maio de 2021, segundo o Observatório de Mortes Violentas de LGBTI no Brasil, produzido e organizado pelos grupos Acontece Arte e Política LGBTI+ e Grupo Gay da Bahia.
Nesse cenário, o estado só ganhou as duas delegacias especializadas em crimes de intolerância em 2019. A primeira, a Delegacia do Idoso e do Combate à Intolerância, foi inaugurada no município de Santa Maria, região central do estado. A capital só recebeu a sua em dezembro de 2020.
"A grande vantagem de uma delegacia especializada é fazer com que os profissionais entreguem um trabalho de qualidade para os órgãos que darão continuidade à persecução penal", explica Andrea Mattos, titular da Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância (DPCI) de Porto Alegre.
Nona delegacia brasileira especializada em crimes de intolerância, a DPCI recebeu 44 casos de discriminação em razão da orientação sexual ou identidade de gênero até 3 de junho de 2021. Esse tipo de ocorrência é o segundo mais registrado na delegacia, atrás dos 154 casos de agressões por cor ou raça. Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Piauí e Distrito Federal possuem delegacias com atribuições semelhantes.
A existência desses órgãos não supre a necessidade de acolhimento e atendimento adequado em casos de violência motivados por lgbtfobia, segundo a própria Polícia Civil. Por isso, a corporação capacita servidores de outras delegacias para terem condutas adequadas no atendimento de grupos vulneráveis, com um olhar mais atento, humanizado e cientes da legislação vigente.
Ainda para combater a discriminação, o governo gaúcho editou portaria sobre a custódia de pessoas LGBTQIA+ no sistema prisional gaúcho. O documento foi publicado no Diário Oficial do Estado em 2 de julho, um dia depois da revelação do governador na TV.
Ele estabelece cuidados para a comunidade, como o respeito ao nome social e ao uso de roupas adequadas ao gênero com o qual a pessoa presa ou detida se identifica. Além disso, a portaria assegura alas exclusivas para pessoas LGBTQIA+ presas e o direito de transexuais serem encaminhados/as a espaços voltados para seu gênero autodeclarado.
"Parte do que está ali é um acúmulo do que os movimentos sociais já falam há algum tempo. A gente também trabalha na qualificação de servidores da Justiça, juízes e policiais para dar um tratamento digno da população LGBT nas prisões, algo que o estado deveria fazer", comenta Galli.
Outro programa recente é o Qualifica Trans, da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos em parceria com o Senac-RS. Lançada em janeiro de 2021, a iniciativa oferece 127 vagas em cursos profissionalizantes de design de sobrancelhas e informática fundamental, além de um preparatório para o primeiro emprego em 18 cidades gaúchas.
"Nós sabemos que a população trans tem uma dificuldade muito grande de colocação no mercado formal de trabalho. Esses cursos, escolhidos conjuntamente com o Senac, podem propiciar a essas pessoas renda própria e uma qualificação", explica Gabriela Lorezet, coordenadora de Diversidade Sexual da pasta.
Segundo o governo, a pandemia de covid-19 prejudicou o cronograma, que só começará no segundo semestre de 2021. Uma das etapas do plano será acompanhar as pessoas inscritas no projeto durante e após os cursos para identificar se a iniciativa foi efetiva.
Outro programa na mesma linha é o Transforma RS: Transformando Vidas, que pretende oferecer qualificação para a comunidade trans. Executado com uma verba de R$ 250 mil, de uma emenda parlamentar da deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL), o projeto financiará cursos propostos por entidades da sociedade civil, que serão escolhidas por meio de edital ainda sem data para ser lançado.
"Os projetos específicos executados por essas instituições serão voltados a preparar esses indivíduos para atuarem no mercado de trabalho através de percursos de desenvolvimento individuais para inserção na educação formal e nas diferentes configurações do mundo do trabalho", explica Lorenzet.
Para Galli, do Somos, "todas as ações que existem dentro do governo do estado são muito pontuais e muito dependentes da boa vontade dos servidores públicos". Falta ao governo estadual uma atitude mais efetiva para elaborar um plano com metas e prazos que mobilize setores estratégicos e tratem temas como educação, saúde e emprego, diz ele.
"O que a gente precisa e espera é que o governo estadual assuma o problema para si próprio, faça um mapeamento das demandas da população e identifique suas vulnerabilidades. Em quanto tempo vai zerar a desempregabilidade de pessoas trans? Em quanto tempo vai qualificar a rede educacional para professores e estudantes acessem informação sobre gênero e sexualidade?", questiona.
Para Douglas Butzke, professor e ativista do Sapucaia sem Homofobia, a ineficiência do estado pode ser comprovada em espaços voltados para a relação da sociedade civil com o governo, como o Conselho Estadual de Promoção dos Direitos LGBT.
Criado em 2014 e formado por membros da sociedade civil e do governo estadual, o conselho tem caráter consultivo. Ou seja, pode sugerir políticas públicas e fiscalizar a execução do governo nessas ações.
"Ele é engessado nas ações. A gente precisa trabalhar muito no movimento social para dar conta daquilo que o estado não está dando conta", relata o militante da organização de Sapucaia do Sul, região metropolitana de Porto Alegre.
O colegiado teve, por exemplo, de exigir que pessoas LGBTQIA+ fossem incluídas no público que sofria com as consequências da pandemia de covid-19 e recebeu uma parte das mais de 11 mil cestas básicas distribuídas pelo governo em 2020. A ação, que custou R$ 1,3 milhão, atendeu outras populações vulneráveis, como quilombolas e indígenas.
Diretor da Somos, ONG integrante do Conselho, Gabriel Galli acredita que a ação da entidade esbarra na pouca vontade política do governo estadual. "Tem tido um trabalho importante, mas ele não vai ser mais efetivo se o governo não tiver políticas efetivas para serem orientadas e fiscalizadas", diz Galli.
Enquanto isso, entidades da comunidade LGBTQIA+ têm procurado ocupar o vácuo deixado. Durante a pandemia, as ONGs Somos e Igualdade RS (Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul) distribuem cestas básicas, alimentos e roupas.
A Somos atua nas áreas de educação, cultura e saúde. Em dezembro de 2020, a Somos colou lambes pela cidade de Porto Alegre para conscientizar a comunidade sobre o Dia Mundial de Combate à Aids.
Na área da educação, o grupo Sapucaia sem Homofobia fez oficinas extracurriculares com professores das redes pública e privada para discutir diversidade no ambiente escolar.
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