'Sua marmita tá garantida?': um dia na Cracolândia com padre Júlio
"Olha a doação! A doação!" O grito começa a se alastrar assim que a Kombi branca rompe a barreira policial na alameda Cleveland, região da Luz, no centro de São Paulo. Dentro, o padre Júlio Lancellotti e voluntários da Pastoral do Povo de Rua levam quatro isopores grandes lotados de marmitas. Feijoada é o prato do dia.
No último final de semana, a equipe voluntária foi impedida de fazer as entregas pela Polícia Militar. O governo estadual argumenta que só intervém quando se quebra a ordem, Já os moradores em situação de rua reclamam: "A sua marmita tá garantida, né?", gritam aos policiais.
Zona de vulnerabilidade social desde os anos 1990, a chamada Cracolândia, do lado da estação da Luz, é foco de debates e diversos trabalhos sociais. No final de semana, voltou a ganhar destaque nacional após críticas da deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP) sobre os voluntários. Com a repercussão, a pastoral, que tem todo o trabalho baseado em doações, viu os números explodirem.
Mil marmitas por dia
Uma fila se forma rapidamente. Parte das pessoas já conhece Lancellotti, que pergunta, um por um, como foi o dia e se está precisando de algo. Alguns respondem, alguns agradecem, alguns pedem por ajuda. "Vá com Deus", ele repete sempre.
A pastoral entrega diariamente cerca de mil marmitas na região da cidade em três turnos: café da manhã, almoço e jantar. Toda a comida é produzida na sede, no Bom Retiro, e pelo Instituto Capim Santo, uma ONG que também dá assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade. O trabalho começa no início da manhã e vai até o final da noite.
Segundo Lancellotti, todo o dinheiro para essas atividades vem de doações. "Conseguimos reformar a cozinha e os banheiros, comprar um forno para pão e comprar comida, tudo com dinheiro doado. Hoje [9], chega meia tonelada de comida. Amanhã chega mais meia tonelada. O trabalho não para. Os irmãos precisam de ajuda", conta, enquanto divide um pão com passas ainda quente, produzido no local, e toma um café fresquinho —com açúcar.
As entregas são sempre realizadas pelo grupo de voluntários ligados à pastoral. Junto a outras iniciativas religiosas, a equipe é uma das poucas que conseguem transitar sem problemas no coração da Cracolândia, na rua Helvétia, onde os moradores em situação de rua e dependentes químicos se concentram.
Os voluntários se misturam à multidão para atender também a quem não vai até o carro, parado a cerca distância da aglomeração. Alguns pedem duas ou três marmitas. "Se comer na minha frente, pode ser quantas quiser, mas para levar é só uma", responde a voluntária Vanessa da Silva.
A razão é que alguns pedem mais de uma refeição para vender. Enquanto acompanhava a equipe, o UOL presenciou um homem revoltado porque havia pagado R$ 1 pelo prato, distribuído gratuitamente.
Muitos também pediam por água, em falta ontem (9), dia acompanhado pela reportagem. "O mais importante eles esquecem!", gritou um dos transeuntes, irritado. Segundo os voluntários, o crack, principal droga difundida no local, "dá muita sede".
Não é só comida
"Além da alimentação, o principal objetivo do que fazemos é nos aproximar das pessoas. Olhe para isso, todas elas clamam por ajuda. Nós queremos nos aproximar para poder auxiliá-las a sair dessa situação", diz o padre, enquanto distribui as marmitas.
Junto à sede da pastoral, não muito longe dali, há um centro de recolhimento de dependentes químicos, onde é feita uma espécie de triagem das pessoas que procuram tratamento. Um sítio na Grande São Paulo, também da igreja, é responsável pela reabilitação.
"A alimentação é o primordial, porque essas pessoas estão doentes. São seres humanos que não têm, no momento, controle da própria situação. Estão no limite", afirma o religioso, que tenta oferecer ajuda a um homem deitado no chão. "Este é o limite da condição humana."
Na segunda parada da Kombi, na esquina da rua Helvétia com a Barão de Piracicaba, jovens tentavam furtar objetos de carros ao redor. Em cerca de 30 minutos, a reportagem presenciou pelo menos três tentativas.
"Se der vacilo aqui, já era. É tudo para comprar pedra [crack], é a realidade. Por isso é importante isso aqui [o trabalho de doação]", afirma Wellington Cardoso, voluntário da pastoral e ex-frequentador da Cracolândia. Ele viveu no local por cinco anos e está "limpo" há 12.
"Não é fácil, não [deixar o vício]. Se você faz como a polícia faz, como a deputada [Janaina Paschoal] fez, aponta o dedo na cara, fala que é traficante, na grosseria e na porrada, ninguém sai dali, não. Eu saí porque teve alguém que me ofereceu a mão", conta Cardoso, que, além de auxiliar na produção e distribuição das marmitas, também é empreendedor.
Intervenção policial
Desde o último final de semana, a equipe da pastoral tem acusado a PM e a GCM (Guarda Civil Municipal) de impedirem a entrada sob a justificativa que teria limpeza da área e que havia procura de traficantes no local. Grandes operações são feitas no local desde os anos 2000, mas os grupos voltam a se formar.
"Eles chegaram com armamento dizendo que a gente [os voluntários] quebrou a barreira policial, apontando armamento. Pegaram até uma documentação de um voluntário", conta Vanessa, sobre o final de semana. Com aumento da presença policial, o clima ficou mais tenso e eles tiveram de sair. No domingo, a equipe nem foi porque seria impedida.
Ontem, quando a Kombi da pastoral estacionou na barreira, o guarda civil questionou o motivo da entrada, mas permitiu. A entrega foi feita normalmente. Cerca de 30 minutos depois, um novo carro da GCM abordou a equipe dizendo que eles não deveriam estar ali.
A distribuição da comida começou por volta das 14h30. Às 15h, um batalhão da GCM invadiu o local para a limpeza, o que deveria ocorrer às 16h. Chamado de "rapa" pelos frequentadores, a antecipação irritou os presentes.
"Não era 16h? Tão com pressa", gritou um dos frequentadores ao carro que abordava o grupo da pastoral, pendido para que eles saíssem dali —o que irritou ainda mais quem pegava comida. "A sua marmita tá garantida? Tá, né? Tem comida na mesa", gritou o homem.
Do outro lado da multidão, na praça Júlio Prestes, a guarda dispersava as pessoas com cassetetes e escudos. "Veja como tratam as pessoas, com instrumentos de guerra. Agora, dizem que vão limpar e só jogam a população de um lado para outro", reclama Lancellotti.
Isso fez com que a Kombi, ainda abastecida com metade das marmitas, parasse em outro ponto para seguir a distribuição. "É desumano [impedir a entrega]. Eles são usuários, pessoas doentes e passam fome", afirma Vanessa.
Ao UOL, a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) declarou que a Polícia Militar só intervém "em situações de quebra da ordem ou quando acionada pela GCM", o que teria ocorrido no sábado, e que "a ação deflagrada no último sábado durou pouco mais do que 10 minutos e foi encerrada sem o registro de ocorrências".
A SMSU (Secretaria Municipal de Segurança Urbana) afirmou ao UOL que "em nenhum momento houve impedimento para a entrega de alimentos para a população vulnerável", embora a reportagem tenha presenciado reclamações da GCM.
"No último domingo, houve, como todos os dias, apoio às ações de zeladoria no local, que ocorre às 8h, às 11h e às 17h. No perímetro das alamedas Dino Bueno, Cleveland, Nothmann e rua Helvétia há, ainda, um processo de triagem, voltado ao combate das tendas identificadas como pontos de venda e distribuição de drogas", afirmou a secretaria.
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