Pe Júlio: Não se fala 'Deus acima de tudo' e coloca pessoas abaixo do nada
Para o padre Júlio Lancelotti, é incompatível fazer um discurso religioso e carregar, junto com ele, preconceitos de diferentes tipos —sejam eles a homofobia, a transfobia ou o racismo.
"Não adianta falar em nome de Deus e ser homofóbico. Não adianta falar em nome de Deus e ser transfóbico. Não adianta falar em nome de Deus e ser racista. Não adianta falar em nome de Deus e massacrar os povos indígenas. Não adianta falar 'Deus acima de tudo' e colocar as pessoas abaixo do nada", disse o religioso ao participar hoje do UOL Entrevista, conduzido pela jornalista Fabíola Cidral e pelo colunista do UOL Leonardo Sakamoto.
A declaração do religioso acontece após ele ser alvo de críticas de parlamentares como a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), apoiadora do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), por doar alimentos às pessoas em situações de rua. Um dos principais bordões de Bolsonaro é "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".
Na entrevista, Lancelotti disse ainda que a discriminação e o preconceito contra a população em situação de rua, em especial ao grupo LGBTQIA+, são fruto da cultura existente na sociedade —o que, na avaliação dele, acaba também tendo parte também das próprias igrejas.
"A religião faz parte do conjunto da cultura", disse o religioso. Ele declarou, no entanto, que não se pode querer colocar as pessoas "em uma camisa de força". "Temos que libertar as pessoas para que elas aflorem sua humanidade. Todos nós e as igrejas temos responsabilidade nisso também", ponderou.
O padre disse ainda que "falar em nome de Deus não garante a humanização" das pessoas.
Você pode falar em nome de Deus e ser extremamente desumano. Falar em nome de Deus não é garantia de humanização.
Padre Júlio Lancellotti
As doações de alimentos na região da Luz, um dos principais pontos de tráfico de São Paulo, ocorrem como uma forma de combater a manutenção das pessoas em situação de rua, segundo o padre. Júlio declarou ainda que os alimentos doados são capazes de manter as pessoas vivas para sair do tráfico. "O alimento que nós partilhamos em tantos lugares da cidade é um instrumento de aproximação, não é objetivo final, mas um jeito de estar presente e manifestar não só com palavras: 'você é importante para mim, estou cuidando de você'", disse.
Não é só na Cracolândia que se usa crack. Se usa também em condomínios, se usa em todos os meios. Todos nós conhecemos pessoas que são dependentes químicos.
Padre Júlio Lancellotti
'Quem precisa de vaga é carro'
Lancelotti estima que, hoje, São Paulo tenha cerca de 35 mil pessoas em situação de rua. Para ele, o atendimento a essa população não deve ser encarado como um simples oferecimento de vagas em albergues, ação tradicionalmente realizada pela Prefeitura.
"Quem precisa de vaga é carro. Vaga é no estacionamento. As pessoas precisam de um lugar. A população de rua é heterogênea e a resposta [da Prefeitura] é homogênea", disse ele, afirmando que a estrutura dos albergues e centros de acolhida existentes na cidade é a mesma desde os anos 1940.
Para o padre, as medidas em busca de uma solução para a população em situação de rua viriam de diferentes frentes, somando a oferta de locação social, repúblicas e residências terapêuticas.
"As respostas mais eficazes seriam locação social, que dá o direito de morar sem ter o direito de propriedade, repúblicas, residências terapêuticas. É nisso que temos que investir", declarou. "O que as pessoas precisam é ter diferentes respostas, as nossas respostas são sempre grandes, massivas e que não preservam a autonomia. Preservar a autonomia é menos custoso e mais humanizador", disse ainda Lancelotti.
Marmitex não é o que mantém a Cracolândia
Segundo o padre, a doação de marmitas ajuda até mesmo que as pessoas que frequentam o espaço tenham maior aversão ao uso de drogas.
Quando a pessoa está mais alimentada, ela tem até mais intolerância à droga. Determinados alimentos, temos estudado isso, causam uma aversão ao uso de drogas. Não é uma alimentação pela alimentação, é uma alimentação para que elas fiquem vivas, para que elas possam mudar a forma de viver.
Padre Júlio Lancellotti
Respostas violentas, truculentas e "movidas pelo ódio", segundo ele, não resolvem o problema da Cracolândia. "Todos os governadores e prefeitos já anunciaram solenemente: a Cracolândia acabou, e não acabou. Por quê? É por causa do marmitex, que faz a Cracolândia durar 25 anos, é o que garante o lucro dos traficantes? É o que garante a permanência de milhares de pessoas?", questionou.
Para o padre, a situação da Cracolândia e das pessoas que a frequentam está ligada a questões estruturais, políticas e econômicas, em especial, a corrupção e a especulação imobiliária. Apesar do seu trabalho na região, Lancelotti afirmou que há coisas que não consegue resolver.
"Não sou eu que vou fazer investigação do tráfico, não sou eu que tenho que combater traficantes. Para isso, existem na sociedade, como ela é organizada, instâncias específicas", disse.
Redes sociais
Popular nas redes sociais, o padre diz que ele mesmo administra suas contas e nega que o faça por "exibicionismo". Esse trabalho, segundo ele, busca mostrar "a vida como ela é". Além de ajudar a documentar as imagens da pandemia, tem auxiliado também a promover o reencontro de pessoas.
"Alguns falam para mim: 'ah, você coloca muita fotografia'. Saiba que, por essas fotografias, nós temos documentado as imagens da pandemia e nós temos recebido contatos do Brasil inteiro, que localizam pessoas [em situação de rua]", explica.
O padre diz acreditar que a rede social deve ser usada como um instrumento positivo. "Ela pode ser usada para o bem e para o mal. Eu sinto as duas coisas, mas ultimamente tenho sentido muito mais a força de mobilização e solidariedade", disse Lancelotti, que atribuiu a "robôs" os xingamentos que recebe chamando-o de "padre comunista" ou "padre herege".
Lancelotti, por outro lado, disse que também se diverte nas redes —frequentemente, o padre republica cartuns ou tiras com piadas e ironias. "Temos que manter o bom humor", declarou. "O Papa Francisco tem insistido muito nisso. Eu também, na minha convivência com a população em situação de rua, me divirto com os termos que eles usam, vou aprendendo as palavras", afirmou.
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