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Cravinhos e Matsunaga: pais podem ser 'cancelados'?

28.nov.2016 - Elize Matsunaga é vista no primeiro dia de seu julgamento - Nelson Antoine/FramePhoto/Estadão Conteúdo
28.nov.2016 - Elize Matsunaga é vista no primeiro dia de seu julgamento Imagem: Nelson Antoine/FramePhoto/Estadão Conteúdo

Guilherme Castellar

Colaboração para o UOL, no Rio

08/10/2021 04h00

A briga judicial de Elize Matsunaga, condenada por matar o marido em 2012, pelo direito de não ser apagada do passado de sua filha de 10 anos chama a atenção para a realidade de disputas que, no mundo virtual, poderiam ganhar o nome de "cancelamento paterno". Na esfera jurídica, são chamadas de destituição de poder familiar.

Trata-se de situação extrema, prevista no artigo 1638 do Código Civil, em que o pai ou a mãe perde os direitos e deveres que tem perante os filhos menores de idade, e seu nome pode ser suprimido da certidão de nascimento.

Os motivos elencados no artigo 1638 incluem castigos sem moderação, abandono e abuso sexual dos filhos, entre outras hipóteses. Mais recentemente, em 2018, um novo item foi acrescentado ao texto, incluindo homicídio, feminicídio ou lesão corporal grave contra algum familiar. É nesse item que pode se enquadrar o caso de Elize Matsunaga.

A filha tinha 3 anos quando ela matou e esquartejou o marido. Elize está na prisão, onde cumpre pena de 19 anos. A menina, hoje com 10 anos, é criada pelos avós paternos, que detêm a guarda provisória e não permitem que visitas à mãe na cadeia. No embate na Justiça, de um lado, Elize luta pela guarda e pelo direito de ver a criança. De outro, a família Matsunaga quer destituí-la do poder familiar.

Cristian Cravinhos - Reprodução/Record TV - Reprodução/Record TV
Cristian Cravinhos
Imagem: Reprodução/Record TV

Cravinhos

Em 2009, o filho de Cristian Cravinhos, que, com ajuda do irmão Daniel, matou a pauladas o casal Manfred e Marísia Richthofen, em 2002, conseguiu na Justiça o direito de mudar o sobrenome. Em 2020, João entrou com ação para anulação da paternidade. "Tenho vergonha", alegou à Justiça, argumentando ser "fulminado por olhares desconfiados" ao apresentar um documento em que consta o nome do seu pai. O filho aceita abrir mão de qualquer dever jurídico da relação pai-filho, incluindo o direito a eventual herança. O caso segue em segredo de Justiça.

João hoje tem 20 anos, por isso, o cancelamento paterno que ele pede tem outra nomenclatura jurídica. "Não se pode falar em poder familiar para maiores de 18 anos, quando o indivíduo passa a ter independência. Sendo maior de idade, o filho entra com um pedido de negatória de paternidade ou maternidade", explica o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM).

Elize segura cartaz - Divulgação/Vídeo - Divulgação/Vídeo
Elize segura cartaz
Imagem: Divulgação/Vídeo

O que muda?

No caso Matsunaga, se a Justiça decidir pela perda do poder familiar, o nome de Elize pode ser retirado da certidão de nascimento e, ao menos juridicamente, mãe e filha perdem qualquer vínculo. "Se a mãe tiver o poder familiar revogado, ela perde todos os direitos em relação à filha, inclusive o de visitar e conviver", explica Pereira.

No entanto, na ausência de legislação clara sobre o assunto, ainda há muita margem para interpretações jurídicas. Em uma decisão recente, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) entendeu que um pai que perdeu o poder familiar em razão de abandono afetivo ainda tinha responsabilidades perante os filhos, como pagar pensão.

Anulação de registro

Na história, não são incomuns episódios em que um sobrenome cause repulsa ao herdeiro, mas isso não é uma regra, como lembra o professor de Direito Civil da Universidade de São Paulo (USP), Otávio Rodrigues. "Há situações de filhos e netos de nazistas famosos que conseguiram tirar os nomes patronímicos [apelido da família ou sobrenome] de seus ascendentes. Para outros, porém, o sobrenome pode ser indevido motivo de orgulho: a neta do Mussolini acabou de ser eleita [Rachele, nova vereadora de Roma]."

Na Justiça brasileira, anulações dos registros de nascimento acontecem com regularidade, mas as situações mais comuns não partem dos filhos. A grande maioria envolve processos de adoção, quando os pretensos pais adotivos ou o Ministério Público pedem a retirada dos pais biológicos. Mas podem acontecer também quando um responsável descobre que não é genitor de uma criança.

Entretanto, novas interpretações da legislação vêm atualizando o Direito de Família, o que tem levado a mais ações judiciais em que a iniciativa parte do filho. Muitas delas são motivadas por casos de violência doméstica e abusos sexuais ou quando os filhos mudam de gênero.

O caso de Matsunaga é mais complicado, avalia Pereira. "O que deve ser considerado é o interesse da criança. Ela [Elize] pode ser uma criminosa, mas isso, por si só, não é motivo para deixar de ser mãe. O mal feito cometido tem relação ao marido, não ao filho. A parentalidade e conjugalidade são coisas que o direito hoje em dia distingue muito bem", diz o advogado