Os prédios do deputado Rubens Paiva também são coisa de cinema
Selton Mello merece um naco da imensa torcida nacional pelo Oscar para Fernanda Torres. Nosso coadjuvante retratou, com dignidade e leveza, um personagem raríssimo da natureza humana: Rubens Paiva. Engenheiro civil e político, mas bonachão e sofisticado; um construtor do mercado imobiliário, que mantinha ativismo politico e preocupações sociais por um Brasil mais justo. Se tal combinação já era incomum à época, hoje está em extinção.
"Ainda Estou Aqui", tanto no filme de Walter Salles quanto no livro de Marcelo Rubens Paiva, tem a viúva Eunice como protagonista, mas apresenta a muitas gerações a história do ex-deputado do PTB sequestrado e morto por agentes da ditadura militar em 1971.
A carreira como construtor e incorporador do ex-deputado é menos conhecida. Formado pelo Mackenzie em 1954, Rubens Paiva criou a Paiva Construtora. Com outros amigos mackenzistas, fez belos prédios. O mais famoso, em Higienópolis, é o Solar do Conde, na rua Pará, vizinho à Escola Panamericana, projetado pelos arquitetos Pedro Paulo de Melo Saraiva e José Maria Gandolfi (nenhum dos dois tinha sequer 30 anos de idade). Teve o projeto estrutural feito por Roberto Zuccolo, um dos maiores calculistas do país, que morreu pouco depois do Solar ficar pronto. Rubens foi o responsável técnico e construtor. O terreno era da família de Fernando Gasparian, industrial e editor que era o melhor amigo de Rubens (que também aparece no filme, quando se exila em Londres e abriga a filha mais velha do ex-deputado, Vera).
Diferentemente do marketing desesperado das incorporadoras, de ontem e de hoje, que batizam prédios de arquitetura bem plebeia como "barão de", "duque da", "chateau" ou "palazzo imperiale", o "conde" desse prédio era apenas gozação. Tio de Fernando, Sergio Gasparian era casado com Elvira, filha do barão de Rio Claro, quando títulos nobiliários já contavam pouco. Como o prédio foi construído no terreno da casa do conde-fake, "Solar do Conde" era uma boa piada interna.
Também alguns dos melhores prédios da minha Santos natal foram obra da Paiva Construtora. Cresci olhando para eles. Santos hoje, coitada, apesar do alto IDH, assiste a um turbilhão de prédios sub-Dubai (e até sub-Balneário Camboriú). Mas nas décadas de 1950 e 1960, recebeu o melhor da produção paulistana, da elite que queria um apezinho na praia. Os prédios de Rubens, que nasceu em Santos e cresceu em São Vicente, não ficaram tortos. Tinham boas fundações.
Meu favorito é o edifício Portofino, na esquina do canal 1 com a praia, em terreno da família Paiva. Imponente, com ótimos materiais, faria bonito como cenário de filme passado nos anos 1960 na praia do José Menino. O Portofino tem a sorte de ser vizinho, além do mar, a um arborizado canal de saneamento projetado por Saturnino de Brito, de uma rede pluvial que evita enchentes à beira-mar. Os engenheiros Saturnino e Rubens gostariam dessa vizinhança. Renina Katz foi a artista convidada para fazer o painel na entrada do Portofino. Bons tempos que artistas decoravam os prédios. Ali perto fica o Portovelho, belo condomínio também erguido por Rubens e o amigo Pedro Paulo, mas descaracterizado depois de várias reformas patrocinadas por síndicos insensíveis.
Particularidades de Rubens
Rubens não nasceu para ser um engenheiro cinzento, daqueles que não dão a mínima para o belo ou que aceitam qualquer coisa sem tempero. Filho de um empresário e fazendeiro atuante no litoral e no Vale do Ribeira, estudou aqui na capital no São Bento, em regime de internato. Criou ainda como colegial um jornalzinho literário com o colega Haroldo de Campos, futuro poeta concretista. Ao não passar no vestibular de engenharia, decidiu fazer uma longa viagem sabática, primeiro pela América Latina, depois pela Europa. Herdeiros artistas que passam a vida viajando são até comuns; mas herdeiros empreendedores que não pensem exclusivamente em dinheiro e em superar o pai, e que continuem apreciando artes e tenham consciência social, são ainda raros.
Já no Mackenzie, ainda no segundo ano de faculdade, Rubens se juntou aos estudantes de arquitetura Pedro Paulo de Melo Saraiva, Alberto Botti e Marc Rubin em um concurso para projetar hospitais. Por ideia de Rubens, o hospital seria em Registro, no Vale da Ribeira que conhecia bem. Seu gosto por carrões e viagens não excluía pensar em áreas necessitadas. Imagine essa sensibilidade nos atuais incorporadores que projetam condomínios com piscinas de ondinhas ou prédios com elevador para carros (pois tem gente que não vai para cama sem ver o conversível por perto. Deve ser por disfunção erétil). Sim, difícil imaginar. Até os que só fazem moradia popular, com dinheiro público, parecem desprezar seus clientes principais.
E Rubens Paiva ainda foi um homem de esquerda que não achava que toda construção residencial fosse especulação; e que entendia que um prédio de trinta apartamentos era melhor que um único palacete espaçoso ocupando uma área central da cidade. Incomum por onde se olhe.
Por que tão ruins hoje?
Muita gente termina de ler meu livro São Paulo nas Alturas e me pergunta: por que os prédios de antigamente eram tão melhores? Dos materiais à arquitetura, das plantas dos apês ao paisagismo? Respondo que são mil razões: econômicas, culturais, legais e afins, e até do repertório cultural da pequena elite da época que construía ou comprava esses apartamentos.
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Quero receberMas esse trabalho quase artesanal dos Rubens, dos Pedros Paulos e Gaspas daquela geração talvez seja um dos principais motivos. Do tempo dedicado para cada projeto. Cada terreno tem uma particularidade. Tem um vento, um sol, uma esquina, uma topografia. Cada prédio era algo único. Copia-e-cola provoca dissabores permanentes para os compradores ingênuos.
Não são fundos imobiliários da Faria Lima, onde gente distante do métier decide quais 50 prédios serão lançados por trimestre, para obedecer uma planilha, sem nunca ter pisado no terreno nem fazer ideia de quem vai projetar. Nem arquitetos, engenheiros e investidores autômatos, sem a menor ligação intelectual ou afetiva com o que se está construindo.
Sessenta anos depois da entrega do Solar do Conde, quando Rubens Paiva já tinha sido cassado em seu primeiro mandato como deputado federal, olhamos para os prédios dele com admiração. Que velhos enxutos, que nostalgia sixties, que coisa de cinema. Não será fácil fazer o mesmo com o que se constrói agora daqui a sessenta anos. Talvez já estejam demolidos.
A vida é feita de privilégios, em um mundo tão injusto. Minha sorte foi ter cruzado em Buenos Aires, ainda como jovem correspondente, com a também jovem diplomata Helena Gasparian. Somos amigos há 26 anos, sem interrupções. Ela é a "Heleninha" do filme, amiga da filha mais velha de Rubens, Vera. No filme, Vera leva uma bela jaqueta marrom da matriarca Eunice para Londres de presente a Heleninha. No filme, ela nunca devolveu a jaqueta. Minha amiga jura que não se lembra da peça. Mas eu tenho a sorte de conviver com gente que não se esquece da história recente do Brasil, e que sabe contá-la. E que consegue ter os sentidos aguçados, da política à arquitetura.
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