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Mãe pega comida para filhos em comércio e deixa recado: 'Prometo devolver'

Bilhete deixado por mãe que pegou alimentos, no valor de R$ 30, no trailer do "Dr. Honesto" - Arquivo Pessoal
Bilhete deixado por mãe que pegou alimentos, no valor de R$ 30, no trailer do "Dr. Honesto" Imagem: Arquivo Pessoal

Giorgio Guedin

Colaboração para o UOL, em Florianópolis

15/10/2021 20h13

À beira da BR-470, na cidade de Rodeio, em Santa Catarina, há um comércio de alimentos às margens da estrada que chama a atenção: não há funcionários no local e os próprios clientes pegam e pagam pelos produtos adquiridos, na base da honestidade. No "Dr. Honesto", é comum clientes escreverem um recibo ou deixarem um bilhete informando os itens adquiridos. Um deles chamou a atenção, devido ao apelo de uma mãe em um pedaço de papel.

Olá, vim através deste bilhete que peguei algumas coisas para o café com os meus filhos. Mas não vou roubar, quando tiver [dinheiro], prometo devolver. Obrigada

Renato Lagatta, presidente da Associação Beneficente Filantrópica Vida Nova, que mantém o comércio, relatou ao UOL a surpresa com o recado, ainda mais em um momento de crescimento da fome no Brasil, mas não soube precisar o dia em que a mulher pegou os alimentos.

Essa mãe, no desespero, pegou alguns itens e deixou aqui [o bilhete] para não passar por uma pessoa de má índole. Na nossa doutrina, estamos aqui para ajudar. Se a pessoa passa e não tem condição nenhuma [de comprar], está numa situação delicada, está valendo. Este é o nosso objetivo.

A mulher não chegou a ser identificada, com exceção do que parecem ser as suas iniciais no bilhete (A.C.P.). Apesar de tudo que tinha à disposição, ela levou dois pães, um pote de doce de banana e um pacote de cueca virada (orelha de gato), doce típico da região, também conhecido por cavaquinho. As compras totalizariam cerca de R$ 30.

Recado 2 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Trailer começou a receber doação para cobrir os alimentos que a mulher que deixou o recado levou
Imagem: Arquivo pessoal

O recado acabou mobilizando reações. Ontem, uma mulher passou pelo local e fez uma doação em dinheiro, além de deixar um aviso. "Aqui é para ajudar o que a mãe pegou para alimentar sua família", escreveu uma pessoa identificada apenas como Lia.

Uma situação inversa já foi registrada no mesmo comércio, em dezembro do ano passado, quando alguém fez uma doação de R$ 120 em troca de apenas um pão. O dinheiro foi usado para uma ação de Natal com crianças carentes em Indaial, município vizinho.

99% das pessoas pagam

trailer santa catarina - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Trailer costuma receber bilhetes de pessoas beneficiadas com doações
Imagem: Arquivo Pessoal

A ideia do trailer surgiu há quase dois anos, inspirado em um modelo europeu de atendimento autônomo. O objetivo principal é arrecadar recursos para a Associação Beneficente Filantrópica Vida Nova, casa de acolhimento para moradores em situação de rua que faz um trabalho de encaminhamento, como a busca de um emprego ou incentivo ao retorno aos estudos.

Quando quase desistiu do projeto, por falta de dinheiro, Renato usou o veículo, que estava sem função, e começou a realizar a venda de pães e bolos, sem nenhum atendente ou caixa.

O meu tio e minha mulher falaram: 'Vão levar teu trailer, não vai dar certo'. Mas eu sempre confiei no ser humano

Após um começo de vendas fracas, a ação começou a engrenar após um caminhoneiro parar no local. Renato, então, contou como o sistema funcionava. Sem acreditar, o caminhoneiro gravou o empreendimento e compartilhou nas redes sociais. Em poucos dias, com a fama, o retorno teve início.

A contabilidade é feita uma ou duas vezes por dia e, conforme Renato, ser honesto está em alta. "Em quase dois anos que estamos trabalhando, calculamos que 99% das pessoas são honestas, pagam pelo que compram", resume o fundador do "Dr. Honesto".

Hoje, funcionam três trailers às margens da rodovia, um em esquema 24 horas. Um financiamento coletivo também foi lançado em esquema de vaquinha virtual para ajudar os trabalhos.

Mesmo com a fama, o valor das vendas dos produtos ainda não supre todas as despesas da casa de acolhimento. "Não supre as necessidades, mas é um respiro para manter funcionando", conclui ele.