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Aporofobia: entenda a cruel 'arquitetura antipobre' denunciada em SP

Padre Júlio Lancellotti caminha entre pedras instaladas pela Prefeitura de São Paulo sob o viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, no bairro do Tatuapé, zona leste da capital - Henrique de Campos
Padre Júlio Lancellotti caminha entre pedras instaladas pela Prefeitura de São Paulo sob o viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, no bairro do Tatuapé, zona leste da capital Imagem: Henrique de Campos

Alexandre Santos

Colaboração para o UOL

09/08/2022 04h00Atualizada em 09/08/2022 13h51

"Aporofobia" significa aversão, medo e desprezo pelos pobres. O termo é um neologismo (palavra nova) que deriva do grego da junção das palavras á-poros [pobres] + fobos [medo] e tem aparecido com frequência no noticiário.

O padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, tornou-se uma das principais vozes contra a prática —caracterizada por intervenções hostis que visam impedir a estadia, descanso ou passagem de pessoas em situação de rua nos espaços públicos.

Pedras pontiagudas, cacos de vidro, grades e espetos de ferro estão entre os exemplos de "arquitetura antipobres" denunciados pelo religioso em suas redes sociais.

Há também quem opte pelo falso paisagismo ao instalar vasos de plantas, cactos e outros itens em frente a prédios, farmácias, restaurantes e demais estabelecimentos comerciais.

Confira a seguir nove casos de "aporofobia" já apontados pelo padre Júlio:

'Barreiras humanitárias'

O prefeito de Sorocaba (SP), Rodrigo Manga (Republicanos), foi denunciado depois que anunciou a realização de "barreiras humanitárias" para conter a migração de usuários de drogas da cracolândia, na capital paulista, para o interior.

Essas barreiras são tendas montadas nas rodovias que dão acesso à cidade, no terminal rodoviário intermunicipal e em outros pontos da região. O objetivo da ação é identificar a chegada de dependentes químicos, que, segundo a prefeitura, serão encaminhados para serviços de saúde.

Segundo Manga, chegaram à cidade mais de 60 dependentes químicos vindos da cracolândia, localizada no centro da capital paulista. A migração coincidiu com o avanço nas ações da Polícia Civil e da Guarda Civil nas áreas ocupadas pelos dependentes químicos na capital.

Para o padre Júlio, a medida caracteriza-se como mais uma prática de "aporofobia".

Proibição de esmolas

Em abril, uma igreja de Florianópolis divulgou uma placa proibindo a doação de dinheiro para pessoas em vulnerabilidade nas dependências da instituição. O aviso dizia: "Pedimos por gentileza para não dar esmolas no interior da igreja nem no portão. Isso não dá dignidade".

Segundo o padre Júlio Lancellotti, que divulgou a denúncia após receber uma fotografia por intermédio de um fiel, no mesmo dia em que o caso ganhou repercussão, o anúncio foi removido.

Ao UOL, o padre disse duvidar que tenha sido uma ação dos freis, mas pessoas que estavam próximas a um bazar organizado pela instituição podem ter colocado o cartaz. De qualquer maneira, ele vê que a proibição de esmolas em igrejas tem sido uma prática crescente pelo Brasil.

"Acontece, porque também é uma prática de pessoas em situação de rua entrarem nas igrejas para pedirem ajuda. Com o aumento do empobrecimento da população, com o aumento de pessoas em situação de rua, com pessoas dormindo em portas de igrejas, isso acaba sendo algo muito recorrente", disse.

Banco 'anti-humano'

Uma das imagens publicadas nas redes do padre Júlio Lancellotti mostra o que ele chamou de banco "anti-humano" nos pontos de ônibus de Florianópolis. Trata-se de um equipamento metálico em forma de cilindro e espaçado. O modelo impede que alguém possa se deitar.

A mesma foto registra um homem em situação de rua dormindo sobre um papelão colocado no chão.

A Prefeitura de Florianópolis informou, por meio da Secretaria Municipal de Mobilidade e Planejamento Urbano, que os abrigos de passageiros foram instalados em outra gestão, mas que "já estão sendo substituídos por novos há mais de um ano".

A pasta também disse que "os novos pontos de ônibus são humanizados, modernos e têm baixo impacto na paisagem".

Sistema antifurto de carnes

Redes de supermercados passaram a adotar sensores e alarmes na tentativa de conter furtos de carnes. Segundo o Procon-SP (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor), a prática não é ilegal, mas pode ser considerada discriminatória quando é adotada sem critério —por exemplo, em apenas algumas unidades ou em determinados bairros.

No fim de 2021, o órgão de defesa do consumidor paulista informou que iria multar uma unidade da rede Extra no Jardim Ângela, bairro na zona sul de São Paulo, por entregar bandejas vazias a quem pedia carne no açougue. Nessa unidade, o cliente fazia o pedido, a carne era pesada, mas ele só tinha acesso ao produto depois de pagar por ele, no caixa.

O padre Júlio compartilhou a imagem de um sistema antifurto de picanha adotado por um hipermercado em Vitória (ES). "Tempos difíceis", lamentou.

Garras de ferro em restaurante

Em janeiro, o restaurante Mignon, localizado na Graça, bairro de alto padrão em Salvador, colocou garras de ferro pontiagudas nas jardineiras do estabelecimento.

A imagem repercutiu negativamente nas redes sociais e chegou a ser compartilhada pelo padre Júlio Lancellotti. Com a repercussão, o restaurante emitiu nota em que justificou ter colocado as ponteiras de metal porque há uma caixa d'água no local cuja tampa já foi roubada diversas vezes.

"Depois de diversos questionamentos sobre o material escolhido e consultoria com arquitetos, a empresa decidiu substituir as ponteiras por outro sistema de proteção. O Mignon pede desculpas pelo transtorno e agradece a todos que colaboraram para a criação de uma solução mais eficaz", dizia o comunicado.

Gotejamento em marquises

O padre Júlio também expôs uma suposta técnica para deixar calçadas encharcadas e impedir que moradores de rua se abriguem embaixo de marquises.

Segundo ele, a estratégia foi usada em um condomínio comercial na cidade mineira de Barbacena. "Atenção: técnica de gotejamento para afastar pessoas em situação de rua. Barbaridade!", publicou, em fevereiro deste ano.

Estacas 'antimendigo'

Uma foto que mostra espetos de ferro em uma escada lateral da Catedral Metropolitana de Campinas, no interior de São Paulo, causou polêmica em dezembro do ano passado. Após denúncia do padre Júlio, as estacas 'antimendigo' foram removidas.

"Aporofobia na Catedral de Campinas. Nem sempre a casa de Deus é a casa do Povo", postou o padre no Instagram. A publicação chegou a ser removida, mas viralizou e foi compartilhada por famosos.

De acordo com a paróquia, as peças estavam no local ao menos desde os anos 90 e foram instaladas em um portão lateral, enquanto a escadaria da entrada principal da catedral está livre de obstáculos.

Jatos de água em moradores de rua

Em março de 2018, um morador de rua na região da cracolândia foi alvo de forte jato de água lançado por um agente responsável pela limpeza rotineira da área. À época, o serviço estava sob a responsabilidade do então prefeito João Doria (PSDB).

A ação agressiva para forçar a retirada do homem sentado na calçada foi exibida pela TV Globo. O vídeo mostra que ele tenta usar um cobertor para se proteger do jato de água, lançado por pelo menos 15 segundos em sua direção, até que duas assistentes sociais avançam para interromper a ação.

O secretário de Prefeituras Regionais, Cláudio Carvalho, afirmou que o morador de rua foi identificado —segundo ele, não aceitou ser acolhido em equipamentos da prefeitura— e a empresa contratada, a Inova, foi multada em R$ 1.650 (valor contratual para infração grave). Ele pediu a demissão do agente, e a Inova disse que ele foi desligado.

Lancellotti lembrou que esse tipo de ação passou a ser constante e lembrou um exemplo que ocorreu em 17 de julho de 2017. Naquela data, quando termômetros de São Paulo registraram a madrugada mais fria do ano (7,9ºC), moradores de rua da praça da Sé, no marco zero da cidade, foram acordados com jatos de água de equipes municipais, que removeram barracas e deixaram roupas e cobertores molhados.

A gestão tucana, por sua vez, negou que jatos de água tenham sido direcionados aos moradores.

Pedras sob viadutos

Em fevereiro de 2021, uma empresa contratada pela Prefeitura de São Paulo instalou pedras pontiagudas sob o viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, na avenida Salim Farah Maluf, no Tatuapé, zona leste da capital. Assim, moradores de rua e catadores de recicláveis ficariam impedidos de colocar colchões e papelões para dormir.

À época, o padre Júlio foi até o viaduto para quebrar a marretadas algumas das pedras que foram colocadas pela gestão do então prefeito Bruno Covas (PSDB). "Marretada nas pedras da injustiça", escreveu ele.

Após a repercussão do caso, a prefeitura afirmou em nota que a determinação para realizar a obra foi uma "decisão isolada" de um funcionário da Subprefeitura da Mooca, sob o comando de Guilherme Kopke Brito. O servidor responsável pela ação foi exonerado.