Topo

'Memória do povo é curta': no cemitério da covid, há dor e negacionismo

Covas no Cemitério São Luiz, na zona sul de São Paulo - Júlia Marques/UOL
Covas no Cemitério São Luiz, na zona sul de São Paulo Imagem: Júlia Marques/UOL

Do UOL, em São Paulo

20/10/2022 04h00

Do bar Pé na Cova, Tânia Nilza, 34, assistia à chegada de corpos de vítimas da covid-19 ao cemitério que fica em frente ao seu comércio. Eles ocuparam dezenas de valas abertas no São Luiz, um dos maiores de São Paulo, no extremo sul da cidade.

Na pandemia, as covas abertas foram filmadas de cima e o São Luiz chegou a ser chamado cemitério do "código de barras", em referência à sequência de valas, uma ao lado da outra.

A cena anunciava a tragédia que estaria por vir: no Brasil, 687 mil pessoas morreram infectadas pelo coronavírus. Só no estado de São Paulo, foram 175 mil.

Conhecido como cemitério dos crimes por enterrar vítimas de assassinatos em uma área periférica da capital, o São Luiz passou a ser um dos principais destinos de mortos pelo vírus na cidade de São Paulo. Quase duas mil pessoas vítimas da doença foram enterradas no local.

De volta agora à necrópole, passado o auge da pandemia, funcionários e moradores do entorno se dividem entre relembrar o trauma da covid-19 e questionar o alcance da pandemia. As opiniões também divergem sobre a gestão federal da emergência sanitária.

Para Tânia, que mora no piso acima do Pé na Cova, logo ficou evidente que não se tratava de uma "gripezinha", como insistia o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL).

Além de ver com os próprios olhos a chegada de corpos infectados pelo vírus no cemitério, ela recebia as notícias das mortes pelos relatos de amigos de longa data que trabalham nos velórios e sepultamentos do São Luiz.

A cada dia, eles traziam um balanço de quantas vidas a doença tinha levado.

Cemitério São Luiz - Júlia Marques/UOL - Júlia Marques/UOL
No início da pandemia, a Prefeitura abriu 3 mil covas no cemitério São Luiz
Imagem: Júlia Marques/UOL

"Morreu muita gente e entramos em uma bolha. Tínhamos medo de tudo. Quem era certo ficou louco", lembra a vizinha do cemitério. Grávida no início da pandemia, ela temia pela saúde do bebê no ventre e de outra filha pequena.

Naquela época, coveiros do São Luiz trabalhavam como nunca para dar conta dos quase 40 enterros que faziam por dia. Só de vítimas da covid-19, chegaram a ser sepultados em um único dia 15 corpos no cemitério, em abril do ano passado.

Por causa da alta demanda, a Prefeitura de São Paulo passou a fazer até sepultamentos noturnos e teve de instalar geradores de energia elétrica para iluminar os enterros durante a noite.

Os protocolos sanitários cansavam ainda mais. Os sepultadores tinham de usar macacões, luvas e máscaras e precisavam fazer o trabalho mais difícil de todos: negar aos parentes a última chance de ver o rosto da pessoa que morreu.

"Eu descia o caixão e depois encontrava a família aqui desesperada porque não conseguia ver seu ente querido, não sabia se era o ente querido dela porque estava em dois sacos", lembra um dos coveiros do cemitério, de 41 anos, enquanto apontava para as quadras onde as vítimas eram enterradas no São Luiz.

Sepultador - Júlia Marques/UOL - Júlia Marques/UOL
No Cemitério São Luiz, foram enterradas quase 2 mil vítimas da covid-19
Imagem: Júlia Marques/UOL

"As famílias só podiam fazer uma oração de cinco minutinhos. Entravam em desespero", conta ele, que preferiu não se identificar. Os protocolos foram adotados para evitar contaminação. Em uma manhã de sexta-feira neste mês, o coveiro e um colega retiravam restos mortais de um dos gavetões enquanto recordavam a tragédia.

São cenas que não saem da memória. Sepultador do São Luiz, de 41 anos

Mais de um ano após o auge de mortes, o movimento no cemitério contrastava com os relatos do passado. Funcionários contam que passam dias sem receber uma vítima de covid-19.

O sepultador também tem relatos pessoais da covid-19, como tantos brasileiros. Acredita ter transmitido o vírus à esposa — a mulher chegou a ficar internada, mas se recuperou bem. E pediu permissão para fazer o sepultamento da própria tia, morta pela covid-19 no ano passado.

Hoje, após a turbulência daqueles tempos, o coveiro consegue avaliar: muita gente que ele enterrou foi embora deste mundo "antes do tempo", como costuma dizer. Em parte porque não se cuidou ou porque não havia recursos na época.

Já a vacina, única forma de controlar a doença, até chegou, mas com "atraso" do governo federal, na avaliação do sepultador. Quando o Brasil começou a vacinar, em janeiro de 2021, mais de 50 países já tinham iniciado a imunização.

Remédios e jacarés

A poucos metros dali, um grupo de auxiliares de jardinagem do cemitério falava de política. Sentados no meio-fio, ao lado de lápides de 2020, os jovens debatiam o tema de toda esquina brasileira: as eleições para o segundo turno.

Na pandemia, auxiliares de jardinagem não lidavam diretamente com os corpos das vítimas, mas limpavam os canteiros e recolhiam as folhas que caíam no chão. E viam a movimentação do cemitério: a quantidade de corpos que chegava todos os dias, o trabalho dos tratores para abrir novas covas.

O método para não se emocionar era "abaixar a cabeça" e olhar para o chão, explicam.

Parte do grupo critica a gestão federal na pandemia. "Ele (Bolsonaro) falou que não era coveiro. É desumano", apontou um auxiliar de jardinagem do cemitério, de 28 anos. "E que as pessoas iriam se transformar em jacaré (se tomassem vacina)", criticou outro funcionário, de 24.

Mas, até mesmo entre quem viu diariamente as mortes pela covid, há divergências. Para um dos colegas que percorre os canteiros da necrópole diariamente, a falha na gestão da pandemia ocorreu por parte do ministro da Saúde à época, Luiz Henrique Mandetta, que acabou demitido em abril de 2020.

"Ele (Mandetta) não queria deixar as pessoas irem para o hospital, sendo que elas já estavam com sintomas". Para o jovem, o vídeo em que Bolsonaro imita pessoas com falta de ar "foi tirado do contexto" e o Brasil "reagiu bem à pandemia"

"Se você mandar o povo parar de trabalhar, quebra o país", justifica o funcionário terceirizado do cemitério, de 25 anos, que também defende o tratamento precoce com um remédio comprovadamente ineficaz.

Na vizinhança do cemitério — e apesar da proximidade com as valas — também há quem duvide do que aconteceu.

Paraíba, o apelido do dono de um bar com vista para uma das quadras do cemitério, diz que a covid "não foi isso tudo que falaram" e argumenta que muitas mortes por outras causas foram atribuídas ao vírus.

"Fizeram um 'apavoração'", diz o dono do bar vizinho ao cemitério São Luiz, de 42 anos. Ele conta que não pegou a covid-19 nem perdeu nenhum parente para a doença. Quando pôde, tomou as duas doses da vacina.

No ano passado, 14,4 mil vítimas da covid-19 foram sepultadas nos 22 cemitérios municipais da cidade. Neste ano, após a vacinação de grande parte da população, o número caiu para 2.095 vítimas, segundo a Prefeitura. O Serviço Funerário de São Paulo lamentou em nota o número de vítimas da covid-19 e reforçou o agradecimento aos servidores da linha de frente.

Maria Aparecida de Matos - Júlia Marques/UOL - Júlia Marques/UOL
Maria Aparecida de Matos, auxiliar de florista, tem pesadelos com as cenas que vê
Imagem: Júlia Marques/UOL

A 300 metros do bar de "Paraíba", a auxiliar de florista Maria Aparecida de Matos, 31, que faz os arranjos de flores para as vítimas, conta que ainda não se recuperou do abalo emocional com a pandemia. "Era aquela agitação e o fluxo, intenso", diz ela, que começou no ramo fúnebre no ano passado.

Quando a causa da morte era a infecção pelo coronavírus, Maria pouco tinha contato com o corpo. "A gente só deixava as coroas dentro do carro, correndo". Para ela, que sonha à noite com as vítimas, houve negligência e falta de preparo no Brasil.

Memória e novos monstros

E, agora, meses depois do momento mais grave da pandemia, pouca gente fala no assunto. "Parece que já tem 10 anos que aconteceu, mas não. É muito atual. A memória das pessoas é curta."

Enquanto a florista lida com as dores emocionais cultivadas na pandemia, outros monstros estão à espreita. Neste mês, ela conta que levou uma coroa de flores a um bebê de 7 meses, vítima da meningite.

"A gente continua à mercê, pode chegar outro vírus. Vai precisar morrer esse tanto de gente?", indaga ela. "Não podemos esquecer."