'Antes tivesse ido para um hospital público', diz mulher amputada no RJ
Há mais de três meses, a mulher que foi internada para dar à luz em um hospital particular no Rio e acabou com mão e punho amputados após o nascimento do filho precisou reaprender atividades que antes eram simples. Enquanto aguarda por respostas, ela luta para vencer as limitações diárias na maternidade, aguarda pelo início da reabilitação, a chegada de uma prótese e a descoberta de uma nova função em seu trabalho.
Gleice Kelly Gomes Silva, 24, teve uma reunião de duas horas com médicos, mediadoras e o jurídico do Hospital da Mulher NotreDame Intermédica, de Jacarepaguá, zona oeste da cidade, e ficou desapontada.
Eu esperava mais dessa reunião, sinceramente. Me ofereceram um acordo, mas não aceitei. Disseram que vão me dar a prótese e a reabilitação, mas isso é o mínimo depois de tudo, né? Eles disseram que eu precisava de uma ambulância equipada para ser transferida, mas não tinha nada lá. Falaram que priorizaram a minha vida, invés da minha mão. Mas quem me garante que foi isso mesmo?"
Agora, ela aguarda o resultado da perícia, feita pelo IML (Instituto Médico Legal) e pelas investigações conduzidas pelo Conselho Regional de Medicina e Ministério Público do Rio de Janeiro para ter resposta. O hospital diz que não houve erro médico e que a perda do braço não foi motivada pelo acesso venoso, colocado para passar medicamentos.
"Tenho pesquisado vários conteúdos no YouTube e no TikTok de pessoas comentando o meu caso. Esses profissionais da saúde explicam e dão várias hipóteses sobre o que levou a amputação, de forma muito mais clara que o hospital, inclusive".
Mulher amputada após dar à luz filho tenta reaprender atividades simples
Desafios na maternidade
Mãe de três filhos, Gleice está precisando reaprender funções que antes ela tirava de letra, como dar banho, dar mamadeira e trocar uma fralda.
Tentei dar banho no meu filho, mas não consegui. Preciso de um suporte que é tipo uma boia que segura o bebê, isso vai me facilitar muito. Fiz amizade com uma moça na internet que é mãe e também não tem braço. Ela me manda vídeos de como trocar fralda, dar banho, como prender meu cabelo. Tem me ajudado bastante".
A rede de apoio de Gleice tem sido fundamental para não passar por isso sozinha. Além do marido, ela conta com a ajuda da mãe, da tia, da irmã e da sogra, que diariamente, dão suporte para as atividades do dia a dia.
"Assim que eu amputei meu braço, minha mãe e meu marido foram para a internet pesquisar vídeos e formas de como me ajudar a passar por isso. A ajuda deles tem sido muito importante para mim".
Gleice ainda não fez as adaptações em sua casa para a nova rotina, mas conta que tem se empenhado para tocar a vida da forma mais normal possível.
"Eu quero muito a prótese, mas fico com medo do corpo rejeitar, aí vai ser mais uma frustração. Meu foco mesmo é me adaptar da forma que eu estou, porque se der certo, ótimo, se não, eu já vou saber me virar bem".
Desde quando ficou internada, seu leite secou e, por isso, não consegue amamentar o bebê. Levi se alimenta pela mamadeira. Assim que teve alta, recebeu várias fraldas e latas dos amigos e colegas de trabalho que foram visitá-la, mas o estoque de leite já está acabando.
Vida profissional
A fiscal de caixa de supermercado ainda não sabe qual função irá exercer em maio, quando retornar ao seu ambiente de trabalho.
"Eles ainda não sabem qual cargo vou exercer e falaram que posso até voltar para a mesma função, mas confesso que não quero, porque mexo com dinheiro. Se tiver qualquer erro de contagem nas notas, a responsabilidade vai ser minha. Eles já estão conversando sobre qual função eu vou ficar, mas confesso que quero conhecer outra área. Poderia ficar no televendas, no RH ou até mesmo na mercearia. Pegar alguma coisa é mais fácil do que mexer com dinheiro".
O supermercado iniciou um processo de reabilitação para ajudar nesse retorno de Gleice, após a licença maternidade e as férias. Semanalmente, eles ligam para ela e marcam reuniões para saber como está o processo de recuperação.
"Meu trabalho tem muitas oportunidades para crescer. Pensei em fazer RH (faculdade) futuramente, mas tenho medo até de sobrecarregar, prejudicar essa outra mão, caso entre em uma faculdade. Tenho que pensar nisso tudo agora. Estou descobrindo ainda como vai ser, se terei que fazer exercícios, essas coisas".
Entre tantas mensagens de solidariedade, ela não recebeu nenhuma ajuda de médicos querendo contribuir de alguma forma. Para a reunião, ela e a advogada tentaram levar algum profissional para ajudar no esclarecimento de informações, mas sem sucesso.
Antes tivesse ido para um hospital público. Tive meus outros filhos no SUS, sem problema algum. O que me deu alegria para passar por tudo isso foi o Levi. Só de saber que ele está bem, fico aliviada".
Entenda o caso
- Gleice foi admitida para um parto normal em 9 de outubro de 2022, com 39 semanas de gestação.
- Após apresentar complicações devido a uma hemorragia, ela precisou ser transferida para a unidade hospitalar de São Gonçalo, na região metropolitana.
- Enquanto tratava o quadro hemorrágico, o acesso para receber medicamentos no braço esquerdo, feito no Hospital da Mulher de Jacarepaguá, preocupava Gleice e a família, devido ao inchaço e coloração arroxeada na mão.
- Cerca de 12 horas depois, segundo a família da paciente, os funcionários decidiram pegar um acesso no outro braço e em seguida, um acesso profundo no pescoço da paciente.
- Gleice foi transferida, sua mão e seu antebraço estavam roxos, e quatro dias depois, ela recebeu a notícia que precisaria fazer uma amputação.
O médico falou que não foi o acesso venoso que causou a amputação da Gleice, que não teve relação. Ele disse que ou salvava a vida dela, ou a mão. Quer dizer, você só pode ter um problema, se tiver dois, vai ter que escolher? Tinha que ter uma equipe médica capacitada para fazer as manobras corretas.
Monalisa Gagno, advogada da paciente
Confira, na íntegra, o que o hospital diz ter acontecido:
O Hospital da Mulher afirma, em nota ao UOL, que, no atendimento de Gleice, foram disponibilizados todos os recursos materiais e humanos, incluindo três anestesiologistas, nove obstetras e três cirurgiões vasculares, além de equipe de enfermagem. Diz ainda que "foram seguidos todos os protocolos para casos de hemorragia grave antes da transferência da paciente. "Foram ministrados os medicamentos necessários; uma curetagem foi realizada; e dois balões de Bakri foram colocados".
"Com objetivo de garantir à paciente Gleice as melhores condições de assistência na recuperação, o Hospital da Mulher pôs a sua inteira disposição profissionais capazes de prestar acompanhamento médico, apoio psicológico e serviços de fisioterapia. Também lhe ofereceu a possibilidade de colocação de uma prótese que permita sua readaptação à rotina", diz o comunicado.
Anteriormente, a unidade de saúde descreveu o passo a passo do atendimento e o que pode ter levado à amputação:
- A paciente tinha histórico de múltiplas gestações, inclusive com algumas complicações, o que aumenta risco de hemorragia pós-parto, além de diabetes gestacional;
- O parto ocorreu sem intercorrência, com bebê nascido vivo e bem;
- A paciente apresentou quadro importante de hemorragia pós-parto, evoluindo para um choque hemorrágico grave secundário a atonia uterina e inversão uterina. Tal quadro é responsável por 60% de mortes maternas no período pós-parto: 45% destes óbitos ocorrem nas primeiras 24 horas. A hemorragia pós-parto é responsável por 25% de todas as mortes maternas no mundo, segundo a literatura médica;
- As medidas imediatas tomadas na unidade hospitalar garantiram a manutenção da vida da paciente;
- O braço esquerdo foi imediatamente tratado desde os primeiros sinais de isquemia secundário ao choque hemorrágico, conforme consta no relatório médico;
- Todas as medidas e decisões tomadas priorizaram salvar a vida da paciente até que ela apresentasse melhores condições para transferência para um hospital de maior complexidade;
- A paciente recebeu assistência de todos os médicos, especialistas e recursos necessários na tentativa de preservar o braço esquerdo. Porém, devido à irreversível piora do quadro com trombose venosa de veias musculares e subcutâneas, houve a necessidade de se optar pela amputação do membro em prol da vida da paciente.
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