Menina-prodígio sem amigos: a história da aluna da USP que desviou R$ 1 mi
A estudante Alicia Dudy Muller Veiga, 25, parecia um caso exemplar de superação: de origem humilde, prestou vestibular quatro vezes para, aos 20 anos, vencer 16 mil concorrentes e ingressar na Faculdade de Medicina da USP, onde em pouco tempo assinou artigos científicos e virou braço direito de professores. Quando ela apareceu de carro novo, iPhone e apartamento mobiliado, todos acharam que o sucesso da menina-prodígio tinha apenas começado.
A vida da aluna brilhante, porém, virou caso de polícia. Há um mês, no dia 14 de janeiro, Alicia ficou conhecida após ser acusada de desviar R$ 937 mil arrecadados pela Comissão de Formatura da turma da qual fazia parte. Cinco dias depois, ela confessou o crime.
De promessa a prodígio
Alicia nasceu em Itararé (455 km de São Paulo) e foi adotada ainda pequena por um casal com um filho 19 anos mais velho que ela. Os quatro viviam em um sobrado na Vila Gumercindo, perto da estação Alto do Ipiranga, na zona sul da capital.
Enquanto o pai, Orlando Muller, 68, mantém uma pequena oficina no térreo da casa onde a família mora, a mãe, Cristina Dudy Muller, 67, prepara marmitex no segundo andar para vender na vizinhança.
Alicia concluiu o ensino médio aos 17 anos na concorrida Escola Técnica Estadual Getúlio Vargas, quando tentou passar no vestibular pela primeira vez, mas não conseguiu. Pelos três anos seguintes, ela tentou passar na USP estudando no cursinho pré-vestibular Poliedro.
Ela chegou a passar em Farmácia em 2017, fez a matrícula, mas desistiu na última hora para tentar novamente o sonho de cursar medicina, o que finalmente conseguiu em 2018, aos 20 anos.
Todo tempo que você gasta fazendo simulado, estudando pós aula, parece que aquilo não foi nada comparado àquele dia que você vê seu nome na lista.
Alicia Muller, em vídeo de 2018
O plano era se especializar em neurocirurgia ou cirurgia oncológica. Sua vida acadêmica, porém, foi tomando outros rumos à medida que se envolvia com trabalhos na USP. Na pandemia, se voluntariou para pesquisas sobre a covid-19, o que lhe rendeu participação em artigos científicos, especialmente sobre intubação de pacientes.
Alicia também ajudava médicos já formados em fase de especialização. O médico que estava muito atarefado com o plantão entregava a ela, considerada "fora da curva", parte da pesquisa, como coleta de material para doutorado. Esse trabalho acabou lhe rendendo experiência, conhecimento e ajuda de custo.
Foi nesse período que Alicia recebeu R$ 3.000 em cinco parcelas do Auxílio Emergencial na pandemia.
Alicia ainda arrumou tempo para integrar o programa MD PhD, que permite ao aluno de medicina da USP estudar matérias da pós-graduação, com a possibilidade de terminar a faculdade com título de doutor.
Mesmo conciliando tantas atividades, Alicia passou a prestar serviço a uma empresa que prepara estudantes que buscam especialização em alguma área médica. Ganhava R$ 2.000 por mês. Com as outras atividades, acumulava renda mensal de R$ 4.000.
Sociável, mas sozinha
Foi nessa empresa que Alicia reencontrou e estreitou a amizade com uma médica já formada que ela conheceu em 2018. O interesse por pesquisa médica aproximou as duas ao ponto de colegas especularem um namoro desmentido por ambas.
Era na companhia dessa amiga que Alicia fazia raras aparições em confraternizações da empresa e da classe. Embora comunicativa e envolvida em tudo, a estudante não dividia sua intimidade nem mesmo com essa amiga, que acabou interrogada pela polícia.
Ela contou à polícia que Alicia era muito ativa, mas nunca falava sobre a vida pessoal e jamais mencionou a existência de alguma melhor amiga, nem de alguém com quem costumava desabafar.
O relato coincide com o interrogatório da própria Alicia, que se descreveu como "uma pessoa calada, na dela", fechada até com os pais, que só ficaram sabendo do golpe depois que o assunto ganhou o noticiário.
Uma nova vida
Essa amiga, no entanto, notou a mudança no padrão de vida da Alicia, que em 2022 alugou por R$ 3.700 um flat novo de 42 m² no Ipiranga com quarto, sala, cozinha, varanda e duas vagas na garagem.
Em pouco tempo, a aluna mobiliou todo o apartamento com móveis novos, como a TV de 50 polegadas, a geladeira de inox e eletrodomésticos automatizados, como o aspirador de pó autônomo, "tudo aparentemente caro", segundo policiais ouvidos pela reportagem.
Ela também comprou um dispensador automático de ração e um bebedouro elétrico para suas únicas companhias de casa: um cachorro caramelo e outro preto da raça Lulu da Pomerânia, ambos com oito meses de vida.
A amiga também notou o iPhone novo, que Alicia alugava por R$ 3.000 por ano, e o Volkswagen Nivus, que ela alugou por R$ 2.190 por mês.
Para a médica e outros colegas de Alicia, a mudança no padrão de vida se devia aos projetos com os quais ela se envolvia. Esses gastos, porém, "eram incompatíveis com sua renda", segundo a delegada Zuleika Gonzales Araujo.
Confissão, demissão e reclusão
Segundo os alunos, Alicia não demonstrava preocupação ou culpa nos dias que antecederam a confissão. Ela desapareceu do radar, no entanto, quando membros da Comissão de Formatura enviaram um e-mail pedindo o saldo em conta à empresa contratada para arrecadar o dinheiro da formatura.
Com alguma aflição, no dia 3 de janeiro Alicia comentou com a amiga do trabalho que havia perdido todo o dinheiro da formatura investindo em uma corretora financeira. Questionada se ela tinha "ficado louca", Alicia teria encerrado o assunto.
No dia 6, ela enviou mensagens de WhatsApp à Comissão de Formatura confessando o desvio e reafirmando que perdeu tudo depois de um calote da corretora —informação que ela desmentiu em interrogatório.
Depois da admissão, os colegas procuraram a polícia para fazer um boletim de ocorrência, quando souberam que Alicia já era investigada em São Bernardo do Campo por apostas suspeitas na Lotofácil e um calote de R$ 193 mil em uma casa lotérica.
Assim que a empresa soube que havia um inquérito para investigá-la, Alicia foi afastada do trabalho. Quando o golpe nos colegas de faculdade virou notícia, Alicia foi demitida de vez. Desde então, ela trancou a faculdade e se isolou no flat.
"Chegou nervosa, tremendo"
No dia 19 de janeiro, quando foi interrogada pela polícia, Alicia chegou apressada com o rosto coberto pelo paletó do advogado Sérgio Ricardo Stocco. Segundo uma testemunha, ela estava nervosa, tremendo, com a boca seca.
Ela foi relaxando durante as quatro horas e meia de interrogatório. A impressão dos investigadores é que aquele foi o primeiro momento em que Alicia falou em detalhes sobre o que tinha acontecido, o que lhe deu certo alívio.
Quando o depoimento acabou, seu advogado voltou a oferecer o paletó para que ela não fosse filmada pela imprensa. "Doutor, estou de saco cheio, estou cansada de me esconder", teria dito ela, que saiu da delegacia esboçando um sorriso.
No interrogatório, Alicia confessou o desvio e o uso de parte do dinheiro em benefício próprio, mas insistiu que foi ideia dela estudar na internet para apostar na loteria e fazer o dinheiro da formatura render. "Desesperada", perdeu mais do que ganhou.
Arrependida ou fria?
Alicia contou à polícia que há anos passava por acompanhamento psicológico e psiquiátrico, informação que coincide com os chavões de terapeuta que ela repetia no interrogatório, disse uma fonte envolvida na investigação.
Ela usava expressões como "respeitar o momento", "internalizar esse problema", "tirar uma lição do que aconteceu", "pegar essa situação e analisar a origem".
Quando os policiais foram ao flat e apreenderam o carro, também encontraram seu caderno de terapia, a que o UOL teve acesso. Nele, havia frases soltas como:
- Vergonha e culpa: principalmente não conseguir dividir com ninguém sobre o assunto. Medo de ser julgada.
- Não ter noção do valor daquilo e gastar desenfreadamente. Achar que nunca fosse acabar.
- Depois de perder tanto, só queria ganhar a qualquer custo para recuperar.
- Sentimento enorme de culpa só aumentando.
Em outro trecho, escreve sobre "o que poderia ter feito diferente":
- Não apostar!
- Investir: se eu tivesse investido por meio da XP eu não teria perdido nada. Teria renda sem tirar do valor total, mas não consegui pedir ajuda.
- Talvez eu não me sinta merecedora de ajuda, que nem na minha dificuldade de chamar faxineira.
Ela também tentou relacionar "o gatilho de apostar" com um assalto de celular que sofreu na região da avenida Paulista:
- Roubo no final de março e apostas nessa época. Relação?
- Pior de tudo: 1ª aposta na Lotofácil teve 14 acertos. Me deu a impressão de que a qualquer momento eu ganharia.
- Nesse mês eu apostei 400 mil.
- Sentimento enorme de culpa.
Em outro trecho ela analisa "dois impulsos de emoções": a expectativa de ganhar e a frustração de perder.
Segundo um investigador, Alicia tem uma mente compulsiva e ansiosa. Para ele, a história parece muito perfeita: ou ela está muito arrependida ou é fria e calculista.
Uma frase no caderno, porém, convenceu a polícia de que Alicia premeditou o golpe:
Tão estratégica para CHEGAR até esse dinheiro, como não fui nada estratégica para usar sem me prejudicar ou prejudicar outros.
Anotação de Alicia Muller em caderno de terapia
De volta pra casa
Desempregada e sem o dinheiro da formatura, Alicia não tem saldo em suas contas no Santander, Banco do Brasil e Nubank. O bloqueio a suas contas revelou compras negadas por falta de saldo, como uma de R$ 49,90. No cartão de crédito, a dívida ultrapassa R$ 20 mil.
O carro alugado foi apreendido e deverá ser resgatado pela locadora nos próximos dias. A estudante pretendia se manter reclusa no flat até o dia 10 de fevereiro, quando deveria entregar as chaves e voltar para a casa dos pais.
Será da casa dos pais que a aluna de medicina vai acompanhar o desenrolar da investigação. A primeira versão do inquérito da polícia foi devolvido pelo Ministério Público, e o novo inquérito ainda não foi concluído.
O UOL tentou falar com Alicia e seu advogado, mas não obteve resposta.
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