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Medo e terror: servidores relatam ameaças em terra indígena no Amazonas

Fabíola Perez

Do UOL, em São Paulo

28/02/2023 04h00

A sensação de insegurança na Terra Indígena do Vale do Javari, localizada em Atalaia do Norte e Guajará, no extremo oeste do Amazonas, se intensificou oito meses após a morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips —assassinados enquanto viajavam de barco pela região.

Ao menos 11 pessoas estão ameaçadas. Elas trabalham em defesa dos povos indígenas na região.

Servidores públicos locais ouvidos pelo UOL sob condição de anonimato relataram ataques e falta de estrutura para trabalhar. Segundo eles, as tentativas de invasão a territórios indígenas continuam.

Confrontos armados com servidores são formas de impedir a fiscalização. Também há ameaças que chegam por meio de recados enviados por indígenas.

O Vale do Javari é uma das três principais áreas de conflito no país, ao lado da Terra Indígena Yanomami e do município de Jacareacanga, no Pará.

Entidades esperavam por um aumento das forças de segurança na região, após as mortes de Bruno e Phillips. Os assassinatos repercutiram mundialmente e prejudicaram ainda mais a imagem do governo Jair Bolsonaro.

Não houve uma vigilância ostensiva. Ficou uma sensação de impunidade e ausência do Estado. Vimos claramente os efeitos disso no aumento de ameaças contra lideranças e defensores de direitos humanos."
Fábio Ribeiro, coordenador do OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato)

Objetivo é reestabelecer a presença do Estado na região. O governo Lula herdou essa situação crítica, e a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari reuniu ontem autoridades para discutir a proteção de indígenas e de servidores.

Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, as ações buscam:

  • enfrentar o crime organizado;
  • retomar as investigações sobre as mortes ocorridas na região;
  • elaborar um plano de ação do governo federal.

As ameaças ocorrem durante as expedições das equipes que têm de atravessar terras indígenas e zonas de fronteira nesses territórios. Chegam também por meio de ligações, bilhetes e em mensagens nas redes sociais.

"As quadrilhas do narcotráfico utilizam a terra indígena como rota, é uma área muito estratégica de disputa", diz Ribeiro.

A falta de estrutura no Vale do Javari deixa as equipes em situação de maior vulnerabilidade. Um relatório produzido pela OPI —entregue à equipe do governo de transição de Lula— revelou a precariedade das Frentes de Proteção Etnoambiental de Povos Isolados.

Um servidor para cada 720 mil hectares de terras a serem protegidas. Existe hoje 11 desses escritórios, com 105 servidores no total. Eles são responsáveis pela proteção territorial e promoção de direitos em áreas de povos isolados.

Cada servidor seria responsável, sozinho, por monitorar uma área equivalente a cinco vezes a cidade de São Paulo. São áreas muito distantes, que incluem trabalho aéreo, fluvial e terrestre."
Documento da OPI entregue ao governo federal

A estimativa da OPI é que seriam necessários entre 15 e 20 servidores em campo para o monitoramento em terras de povos isolados.

Não tem condições de um servidor fazer sozinho um trabalho desses. Nas expedições é comum ficar cerca de 25 dias em regiões de mata."

O Estado brasileiro reconhece a existência de 114 registros de povos isolados, de acordo com o OPI. Desses, apenas 28 são confirmados. "Com a estrutura que temos, a equipe só dá conta de um quarto do trabalho."

Causas para a violência na região

Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Aiala Colares Couto afirma que um conjunto de fatores impulsiona a violência.

Há áreas federais em que os estados da região amazônica não podem atuar. Com a precarização dos serviços que cabem ao governo federal, houve uma intensificação dos conflitos."
Aiala Colares Couto, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Aumento das áreas do garimpo ilegal e crescimento da entrada de drogas na região Amazônica. O Vale do Javari tornou-se uma região estratégica para o tráfico de cocaína. Também é alvo de grupos criminosos que exploram essas áreas, como as milícias agrárias.

"Facções peruanas atuam de forma articulada às organizações criminosas do Brasil", diz Couto. "A biodiversidade do Vale do Javari também desperta o interesse da indústria da pesca ilegal."

Nenhum servidor público que trabalha em terra indígena se sente seguro hoje. Está muito pior do que dez anos atrás."

Prioridade deveria ser a integração das forças de segurança. "Na prática, é preciso fazer com que os estados atuem com as forças federais", diz Couto.

O coordenador do OPI também defende a criação de uma força-tarefa. "Nenhum órgão vai conseguir atuar sozinho na proteção das terras indígenas e dos defensores de direitos humanos."

Um dos servidores ouvidos pela reportagem afirma que é preciso investir em um rádio com frequência direta com as forças de segurança pública.

O UOL tentou contato com o Ministério dos Povos Indígenas para comentar sobre as ameaças. A reportagem será atualizada em caso de manifestação.