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'Mordia e espancava': ela foi prisioneira do marido e sobreviveu pelo filho

Adriana Moreno, 48, diz que os maus tratos que sofreu do pai quando jovem continuaram na fase adulta, através dos companheiros - Arquivo Pessoal
Adriana Moreno, 48, diz que os maus tratos que sofreu do pai quando jovem continuaram na fase adulta, através dos companheiros Imagem: Arquivo Pessoal

Maurício Businari

Colaboração para o UOL

10/04/2023 04h00

Desde criança, o sonho de Adriana Moreno Próspero, 48, era como o de muitas mulheres. Exercer uma profissão, casar-se com um homem carinhoso, ter filhos e levar uma vida feliz em família. A realidade, porém, se mostrou muito diferente.

Por mais de 30 anos, ela viveu relacionamentos abusivos, foi agredida, humilhada, violentada e chegou a passar um ano como prisioneira do marido, dentro do próprio apartamento.

Ao UOL, Adriana conta sua história.

"No final de 2010, conheci o dono de uma confecção de roupas que, até então, se apresentava como uma figura amável e carinhosa. Mas eu não sabia o que me esperava.

Como ele não gostava do meu filho, Pedro, que era adolescente, fui morar sozinha com ele num apartamento popular, em uma comunidade afastada. Dias após a mudança, fui violentada sexualmente pela primeira vez na vida.

Depois, começaram os espancamentos. Ele me mordia nos braços e pernas e até na língua, que ele tentou arrancar.

Ele tinha rompantes de ira e ciúmes e me prendeu dentro do apartamento por mais de um ano.

Eu não podia sair, trabalhar, acessar internet, não tinha contato nem com meu próprio filho. Quando tentava falar com o Pedro, ele me ameaçava e dizia que o mataria atropelado quando estivesse saindo da escola.

Uma vez, ele me deixou sentada numa cadeira durante 8 horas enquanto balançava uma faca pelo meu corpo todo, dizendo querer me mutilar. Deixava meu corpo todo marcado com as mordidas e as agressões, mas tinha o cuidado de não machucar o rosto, para disfarçar.

Minha família tentou várias vezes descobrir o que estava acontecendo comigo. Mas eu buscava, de todas as maneiras, mantê-los distantes, com medo das ameaças. Eu chorava muito, porque era obrigada a tratar meu filho com frieza, para ele que desistisse de tentar se aproximar.

Adriana agora pode curtir o filho, Pedro, sem as ameaças que sofria do ex-marido - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Adriana agora pode curtir o filho, Pedro, sem as ameaças que sofria do ex-marido
Imagem: Arquivo Pessoal

Sem entender o que acontecia, meu filho começou a ir mal na escola, raspou a cabeça, se rebelou. Eu sofria calada, porque tinha medo que ele fizesse algo de ruim com o Pedro. Foi nessa época que descobrimos que meu filho era gay.

Eu só pensava em manter meu filho seguro, mesmo que me custasse a vida. Foi por ele que sobrevivi a tudo

Depois de um tempo, fomos morar em outra cidade, no interior de São Paulo. Foi lá que nos casamos no civil, porque ele dizia que "mulher sem sobrenome do marido é vagabunda".

Nessa fase, Pedro chegou a morar um tempo conosco, mas com a ajuda da minha mãe, consegui emancipá-lo e enviá-lo para a Argentina, para fazer faculdade e ficar longe de toda essa violência.

Em 2014, eu tive um AVC, fiquei com um lado do rosto paralisado. Ele disse que era frescura e passou a abusar de mim, mesmo doente.

Depois que me recuperei, consegui acessar a internet e descobri que meu ex-marido tinha obrigado meu filho a fazer um empréstimo. Eu fiquei louca de ódio. Esperei ele ir tomar banho e consegui escalar o portão para fugir até a casa de uma amiga, que já desconfiava do que estava acontecendo.

Ela me abrigou e eu nunca mais voltei. Eu só queria me livrar para sempre daquele monstro."

Histórico de abusos

O histórico de abusos iniciou-se muito cedo na vida de Adriana. Filha de um pai violento, ela conta que foi condicionada desde criança a acreditar que toda mulher devia fazer todas as vontades do "homem da casa".

"Fui mãe solo aos 21 anos. Quando Pedro completou 2 anos, me apaixonei por um investigador de polícia. Depois de um tempo, ele me convidou para morarmos juntos. Mas ele foi mudando, se tornando cada vez mais violento. Ele não me agredia fisicamente, mas me ameaçava o tempo todo.

Eu achava que estaria segura, afinal ele era policial, mas descobri que ele era bipolar.

Um dia, descobri que ele tinha uma amante. Fui conversar com a mulher, mas ela contou tudo para ele e ele chegou em casa enfurecido. Me espancou, arrastou pelos cabelos e me jogou no banheiro Sacou a arma e eu sabia que ia me matar ali mesmo. Eu já queria me separar, só não tinha coragem.

Um dia estava tomando banho e apaguei dentro do box. Tive duas paradas cardíacas na ambulância. Foi quando minha mãe me trouxe de volta para a casa dela.

Ainda assim, quando pedi a separação, ele se descontrolou e puxou a arma no meio de uma lanchonete. Minha amiga se colocou na frente dele e me salvou. Foi a última vez que eu o vi".

Atual companheiro de Adriana, Luís a acompanha nas ações em prol da comunidade LGBTQIA+ e se tornou muito amigo de Pedro - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Atual companheiro de Adriana, Luís a acompanha nas ações em prol da comunidade LGBTQIA+ e se tornou muito amigo de Pedro
Imagem: Arquivo Pessoal

Mudança de vida

Em 2015, após morar um tempo com o filho na Argentina, Adriana retornou ao Brasil e conheceu seu atual marido, o funcionário público Luís.

Quando decidi me tornar ativista das causas das vítimas de abuso, Luís passou a me acompanhar. E numa passeata da comunidade LGBTQIA+, em São Paulo, nos tornamos conhecidos mundialmente. Uma foto nossa protestando com uma bandeira do arco-íris foi publicada na imprensa internacional.

A partir daí, minha vida mudou completamente.

Hoje sou terapeuta, participo ativamente da comunidade Mães pela Diversidade, escrevi um livro sobre a minha vida e ajudo Pedro a tocar a ONG Somos Cores. Não me separo mais dele por nada nesse mundo, ele é minha alma gêmea.

Meu trabalho agora é mostrar às vítimas de violência doméstica ou abusos que elas devem pedir ajuda. Digo que não estão sozinhas e que não são as únicas.

Quando se passa por situações como a minha, a gente sente que é culpada e que merece os abusos. Mas isso está errado.

Eu ainda não me perdoei 100% ainda, mas o Pedro diz que eu tenho que lembrar que fui vítima e não a causadora. Eu sobrevivi."

Violência doméstica - Denuncie

  • Ao presenciar um episódio de agressão contra mulheres, ligue para 180 e denuncie.
  • Casos de violência doméstica são, na maior parte das vezes, cometidos por parceiros ou ex-companheiros das mulheres, mas a Lei Maria da Penha também pode ser aplicada em agressões cometidas por familiares.
  • A Central de Atendimento à Mulher (180) funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo WhatsApp no número (61) 99656-5008.
  • A denúncia também pode ser feita pelo Disque 100, que apura violações aos direitos humanos.
  • Há ainda o aplicativo Direitos Humanos Brasil e a página da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
  • Vítimas de violência doméstica podem fazer a denúncia em até seis meses.
  • Caso esteja se sentindo em risco, a vítima pode solicitar uma medida protetiva de urgência.