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'Fui mordido por morcego e virei 1º sobrevivente da raiva humana no Brasil'

Marciano chegou a ser levado ao hospital após ser mordido pelo morcego, mas médico não optou pela vacina porque ele "não tinha sintomas" da doença - Arquivo pessoal
Marciano chegou a ser levado ao hospital após ser mordido pelo morcego, mas médico não optou pela vacina porque ele 'não tinha sintomas' da doença Imagem: Arquivo pessoal

Do UOL, em São Paulo

17/04/2023 04h00

Há meia vida, Marciano Menezes da Silva saiu da pequena cidade de Floresta, em Pernambuco, para as manchetes nacionais. Aos 15, em 2008, ele tornou-se o primeiro brasileiro a sobreviver à raiva humana.

Ele se diz feliz por estar vivo, sente que "nasceu de novo", mas precisa conviver com sequelas que mudaram a rotina dele para sempre.

"A principal [sequela] é que antes eu corria. Agora, não", diz Marciano em entrevista ao UOL. Além de precisar de cadeira de rodas, ele tem dificuldades na fala e na mobilidade das mãos.

As diferenças entre o menino de 15 anos que foi levado ao hospital após uma mordida de morcego em setembro de 2008 e o adulto de 30 que precisa de auxílio para se locomover não são apenas externas.

Hoje, o rapaz marcado pelo trauma não consegue ficar fora da casa em que mora à noite, turno no qual foi mordido pelo animal.

O menino que corria tem uma rotina pacata no sítio em que sempre morou.

Marciano acorda, toma café da manhã fora da casa, volta para dentro e passa horas assistindo à TV todos os dias, exceto quando sai para fazer acompanhamento fisioterápico no centro de Floresta, uma vez por semana.

Independência limitada

Nos anos seguintes à sua cura, o jovem tinha o sonho de uma cadeira de rodas motorizada que o ajudasse a se locomover. Ele ganhou o veículo em 2017, mas, no fim de 2022, mais de cinco anos após a liberdade, o par de baterias do veículo acabou.

14 de janeiro de 2018 - Marciano na sua cadeira de rodas poucos meses após ganhar meio de transporte por doação; hoje, ele precisa de novas baterias para locomoção - Fabiana Maranhão/ UOL  - Fabiana Maranhão/ UOL
14 de janeiro de 2018 - Marciano na sua cadeira de rodas poucos meses após ganhar meio de transporte por doação; hoje, ele precisa de novas baterias para locomoção
Imagem: Fabiana Maranhão/ UOL

Pelo custo elevado das baterias (superior a R$ 1 mil, segundo o rapaz), ele passou a não conseguir mais mover o equipamento sozinho.

"Agora, na maioria do tempo, quando preciso subir para dentro de casa, são os outros que me empurram", conta.

O jovem continua vivendo com o pai e dois dos sete irmãos. Ele conta com eles e com os cunhados para locomoção dentro do sítio.

Pandemia

Um dos períodos mais complicados para Marciano após a doença foi a pandemia da covid-19.

No grupo de risco da doença por causa das sequelas da raiva, ele recebeu a notícia de um irmão e uma cunhada infectados. Em um isolamento ainda mais severo do que o rotineiro, não se contaminou.

O confinamento, porém, impediu uma das poucas atividades que ele fazia fora do sítio: os exercícios para melhorar a movimentação dos membros, afetada pela doença.

Tive de ficar em casa, porque se eu pegasse [covid-19] não ficaria mais vivo. Foi um período complicado, eu parei a fisioterapia, mas já voltei no começo de 2022

Marciano precisou parar a fisioterapia por pouco mais de um ano após início da pandemia, mas voltou às atividades no começo de 2022 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marciano precisou parar a fisioterapia por pouco mais de um ano após início da pandemia, mas voltou às atividades no começo de 2022
Imagem: Arquivo pessoal

O jovem Marciano mantém sonhos antigos. Um deles é ter uma reforma no quarto em que vive e comprar um ar-condicionado para lidar com o calor de Floresta.

O outro é recuperar a pouca independência que conquistou. "Meu sonho é nunca ficar sem a minha cadeira motorizada."

Infecção, tratamento e cura

Marciano foi mordido no tornozelo por um morcego na noite de 7 de setembro de 2008, enquanto dormia. Ele foi levado pelo pai para um posto de saúde da área rural do município no dia seguinte e encaminhado a um pronto-socorro de Floresta em seguida.

Ao ser atendido por um médico, o então adolescente não recebeu a vacina antirrábica por "não apresentar sintomas" da doença. Ele começou a manifestar esses sintomas cerca de um mês depois, quando começou a ter dormência nos braços e febre alta.

O adolescente foi levado para o Recife e chegou a ser "desenganado" por especialistas, que deram, no máximo, 10 dias de vida para ele.

Uma equipe do Hospital Universitário Oswaldo Cruz iniciou no local o protocolo de Willoughby, aplicado à primeira pessoa do mundo a sobreviver à doença, uma norte-americana, no ano de 2004.

Entre as ações do protocolo estavam a indução do coma no paciente e a aplicação de antivirais.

A notícia da cura de Marciano, a quarta pessoa do mundo a sobreviver à raiva, foi confirmada pelos médicos pernambucanos no dia 13 de novembro de 2008. Marciano ainda passou um ano no hospital e voltou para casa em 2009.

Outro caso

Em 2018, 10 anos após o caso de Marciano, outro caso de cura clínica da raiva humana foi confirmado no Brasil.

O caso em questão foi o do amazonense Mateus Castro, 14, atacado por um morcego na zona rural de Barcelos, a mais de 400 km da cidade de Manaus.

O adolescente perdeu dois irmãos, também atacados por morcegos, para a doença, mas sobreviveu após ser submetido ao mesmo tratamento de Marciano.

Em 2021, ele continuava internado na UTI de um hospital de Manaus, ainda com sequelas da doença. O UOL buscou a Secretaria de Saúde do Amazonas sobre o estado de Mateus, mas não recebeu resposta.

O que é a raiva humana

  • A raiva é uma encefalite aguda (inflamação do cérebro) causada por vírus transmitido por mamíferos infectados, principalmente cães, gatos, morcegos e saguis.
  • Ao ser mordida por um animal, a pessoa deve procurar imediatamente uma unidade de saúde para receber o tratamento adequado, que inclui soro e vacina, para prevenir a doença.
  • Os sintomas da raiva começam a aparecer, em geral, entre duas semanas e três meses após o ataque e incluem mal-estar, febre, dor de cabeça, náusea, dor de garganta, fraqueza, dormência e mudanças de comportamento.
  • A doença causa morte na grande maioria dos casos depois do surgimento dos sintomas.