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'Ameaçaram me queimar por ser gay, fugi e virei o apoio que não tive'

Pedro lidou desde criança com uma série de violências; ele fundou uma ONG para ajudar outras pessoas - Arquivo pessoal
Pedro lidou desde criança com uma série de violências; ele fundou uma ONG para ajudar outras pessoas Imagem: Arquivo pessoal

Maurício Businari

Colaboração para o UOL

21/04/2023 04h00Atualizada em 21/04/2023 11h22

Durante a infância e a adolescência, o estudante de medicina Pedro Henrique Moreno teve de aprender a lidar com violências: o abandono do pai biológico, um abuso sexual praticado por um vizinho e a rotina de agressões e humilhações imposta pelos padrastos.

Hoje, aos 26 anos, ele tenta superar o passado ajudando outras vítimas de violência, por meio de uma ONG que criou com o apoio de amigos e colaboradores.

Em entrevista ao UOL, Pedro conta que ainda tem dificuldades de relembrar os momentos difíceis que enfrentou tão jovem.

O pai biológico o abandonou antes mesmo de ele nascer e os dois padrastos o marcaram para sempre após quase 15 anos de agressões físicas e psicológicas. Um deles chegou a querer atear fogo ao corpo do jovem, para ele "virar homem".

Abuso sexual aos 3

Quando era bebê, Pedro morava com a mãe, Adriana, as tias e os avós maternos em Campinas, no interior de São Paulo. O avô era um homem violento e opressor, segundo ele.

Aos 3 anos, foi vítima de abuso sexual por um vizinho — um segredo que ele guardou por muitos anos, por medo da reação da família, principalmente do avô.

Quando ele tinha 5 anos, Adriana conheceu um investigador de polícia e foi morar com ele, levando o menino junto. Foram 10 anos com um homem "dominador" e extremamente agressivo.

Cresci vendo ele xingando, humilhando e maltratando minha mãe. Depois, conforme fui crescendo, a violência começou contra mim também. Ele apontava a arma para nós e nos ameaçava. Eu pedia ajuda para as minhas tias, mas elas normalizavam o que acontecia, porque aprenderam com meu avô que mulher tem de obedecer

O estudante de medicina sempre teve uma ligação forte com a mãe, Adriana - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
O estudante de medicina sempre teve uma ligação forte com a mãe, Adriana
Imagem: Arquivo Pessoal

Quando tinha cerca de 11 anos, sem aguentar mais as agressões, Pedro voltou a morar na casa dos avós.

Ele diz que todo o sofrimento que vivenciou o fez amadurecer muito depressa e que, a partir daquele momento, sua maior preocupação era conseguir libertar a mãe da relação tóxica que vivia com o policial.

"Eu ficava insistindo para ela deixá-lo, mas ela só voltou a morar com a gente depois que sofreu duas paradas cardíacas e minha avó conseguiu trazê-la", conta Pedro.

Mas ele não parou de nos perseguir. Eu tinha dificuldade para dormir, porque achava que a qualquer momento ele entraria atirando na casa dos meus avós. E meu avô tornava tudo mais difícil, ainda mais porque, para ele, minha mãe havia fracassado como filha e, depois, como esposa

O pior estava por vir

Quando Pedro completou 13 anos, sua mãe se envolveu com outro homem, um comerciante de roupas. Ele pensou que nada poderia ser pior do que a violência sofrida com o padrasto policial, mas estava enganado.

Nós éramos muito ligados e ela me largou para ir morar em uma comunidade afastada, longe de tudo. Isso acendeu um alerta em mim. Eu sabia que ela estava tentando fugir do meu avô. Só não sabia que o pior estava para começar

"Ele [o comerciante] a isolou completamente, não deixava ela sair para nada. Ela vivia como uma prisioneira e era fria conosco, distante, não contava o que estava realmente acontecendo", diz Pedro.

Um dia, ele conta, a mãe apareceu de repente na casa dos avós, exigindo que ele entregasse o chip do celular. Chorando, sem entender o que acontecia, ele acabou entregando. Dias depois, foi convocado para uma reunião familiar.

Meu padrasto reuniu a família e contou para todos que eu era homossexual. Que ele tinha visto minhas mensagens. Ele ria, dava gargalhadas e falava: 'Esse é o viadinho da família'. Foi humilhante. Eu não pude nem sair do armário, eu fui arrancado. Depois, ainda fui obrigado a morar com eles

"Ele batia em cada um de nós separadamente. Quando eu estava sozinho, ele me agredia. Quando minha mãe ficava sozinha, ele a agredia. Eu vivia com o corpo machucado, o olho roxo", conta Pedro.

"Ele me levava para prostíbulos e me fazia ficar olhando ele transando com as prostitutas. Me fazia tocar nelas. Ele dizia querer me ensinar a ser homem", lembra o estudante.

Gasolina no corpo

Pedro chegou a ir à delegacia para pedir ajuda, mas foi informado que os agentes não poderiam fazer nada se a mãe dele não fosse pessoalmente prestar queixa.

Um dia, ele me colocou dentro do carro e me levou para um canavial, na zona rural. Jogou gasolina no meu corpo e acendeu um cigarro, enquanto dizia que ia atear fogo em mim se eu não virasse homem logo. E ficava acendendo e apagando o isqueiro, me xingando e fazendo ameaças

Em 2014, a avó de Pedro convenceu Adriana a mandá-lo para a Argentina, para estudar. Elas juntaram dinheiro e o jovem conseguiu enfim sair de perto do comerciante.

"Me perguntavam por que eu tinha ido para a Argentina e eu sempre respondia que foi para estudar. Mas a verdade era outra. Eu estava era fugindo da morte. Hoje sei que se não tivesse vindo para a Argentina, eu poderia estar morto."

Após se recuperar de um AVC, Adriana conseguiu se separar do marido e também fugiu para a Argentina. Durante o ano em que mãe e filho passaram juntos, conseguiram contar um para o outro o que vivenciaram e, dentro do possível, "juntar os cacos".

Ajudar outras pessoas

Após as experiências de agressão, Pedro, que com o tempo percebeu que era bissexual, pensou que poderia auxiliar outras pessoas que, como ele, sofriam diversos tipos de violência e não podiam contar com ajuda.

Ele então começou a dar aulas de espanhol para jovens trans em dificuldades durante a pandemia e que estavam voltando para as ruas para se prostituir.

"Comecei com 5 meninas, de repente já eram 70. Daí fui expandindo a rede de contatos, liguei para amigos, juntei pessoas e nasceu a semente para a ONG Somos Cores, que busca auxiliar vítimas de violência e minorias, sejam elas LGBTQIA+, pessoas pretas, indígenas, ciganas, com deficiência."

Pedro, em ação de distribuição de cestas básicas promovida pela ONG Somos Cores durante a pandemia - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Pedro, em ação de distribuição de cestas básicas promovida pela ONG Somos Cores durante a pandemia
Imagem: Arquivo Pessoal

Atualmente a ONG oferece mais de 20 cursos online, treinou mais de 2 mil alunos e já doou mais de mil cestas básicas.

Em 2021, Pedro foi convidado pela ONU a participar do Modelo das Nações Unidas, uma conferência que ocorreu no Cairo, no Egito, sobre direitos humanos. Após sua participação, os convites para palestras e congressos não pararam de surgir.

A mãe se casou novamente, "mas dessa vez com um homem tão especial" que Pedro passou a chamá-lo de pai.

Luís, o atual padrasto, também o chama de filho, aceita sua sexualidade e ainda o apoia e participa das atividades, incluindo passeatas pelos direitos LGBTQIA+.

Hoje entendo que posso ser o ponto de apoio que eu mesmo não tive para tantas outras pessoas que necessitam

"Após muitas sessões de terapia, que me ajudaram bastante, eu me aceito, me amo, cuido de mim. E, por meio da empatia, consigo fazer estender esse amor e cuidado para muitas pessoas", afirma o estudante, que pretende se especializar em oncologia pediátrica.