Escapou da forca 3 vezes e deu nome à Liberdade: a história de Chaguinhas
Antes de o cosmopolita bairro da Liberdade, no centro de São Paulo, ser palco do Ano-Novo Chinês, das feiras dominicais e dos cafés badalados, um militar negro fazia história ao se revoltar contra as políticas do império português.
Francisco José das Chagas, mais conhecido como Chaguinhas, foi protagonista de uma história que até hoje inspira a cidade.
Cabo do Primeiro Batalhão de Santos, Chaguinhas foi sentenciado à morte em 1821, após participar de uma revolta que reivindicava soldos atrasados (remuneração militar) e igualdade de valores no pagamento para os militares brasileiros e portugueses.
Ele e o também soldado José Joaquim Cotindiba —com quem, acredita-se, tenha orquestrado a revolta — foram enviados a São Paulo, onde seriam enforcados no que hoje é o Largo da Liberdade.
A prática, comum à época, também tinha como objetivo amedrontar possíveis revoltosos.
O inesperado
No dia da execução, Cotindiba foi morto, mas quando chegou a vez de Chaguinhas, algo inesperado aconteceu: a corda se rompe e o cabo sobrevive.
Pede-se misericórdia ao condenado, mas as autoridades são irredutíveis. Ele é levado uma segunda vez, mas novamente consegue sobreviver. O público então clama por "Liberdade" para o condenado — e essa é uma das teorias para a origem do nome do bairro.
Apesar do clamor popular, as autoridades não cedem e levam Chaguinhas a uma terceira tentativa de enforcamento. O cabo, outra vez, sobrevive e o governo decide matá-lo a pauladas.
O relato mais contundente sobre a morte dele é do Padre Feijó, que na época ainda não era sacerdote.
Feijó disse ter sido testemunha do evento e descreveu o episódio dez anos depois, afirmando que o cabo caiu no chão semivivo e teve o corpo "retalhado" na então Ladeira da Forca.
Capela dos Aflitos
A história de Chaguinhas é lembrada na Capela dos Aflitos, na rua dos Aflitos—um local onde a fé, o patrimônio público e a identidade negra se encontram.
A igreja, que abriga o primeiro cemitério público da cidade, inaugurado em 1774, foi alvo de disputas durante os últimos anos, até que, após pressão popular, a prefeitura sancionou uma lei que prevê a criação de um memorial.
Wesley Vieira, pesquisador e parte da direção coletiva da Unamca (União dos amigos da Capela dos Aflitos), explica que os restos mortais do militar podem estar lá.
"Em 2018 foram encontrados nove ossadas humanas em um terreno ao lado da capela, evidenciado a existência de um cemitério e o descaso que foi feito no fechamento dele, já que nem sequer retiraram os mortos remanescentes de lá" explicou ao UOL. A pesquisa dele sobre o local rendeu um guia gratuito de visitação.
Rezadeiras mantêm tradição
Pouco se sabe sobre a vida de Chaguinhas. Segundo Vieira, o episódio da morte do cabo é a única parte sobre a qual ainda há documentos oficiais.
"A história no Brasil é feita de muita incerteza. Existem poucos registros do exército nessa época, ainda mais sobre um batalhão que era mais desprestigiado", explica.
Chaguinhas é um personagem de nome e apelido, com uma data de revolta e uma data de morte. Para além disso, não há mais documentos históricos. Não sabemos da família dele, onde morou, nada sobre o corpo dele. As informações adicionais que temos vêm da tradição oral
Wesley Vieira
O nome do cabo se sustenta na história da cidade por mais de 200 anos graças à tradição das rezadeiras. Logo após a execução de Chaguinhas, elas começaram a incluir o nome dele nas velas que eram acendidas no Morro da Forca, em homenagem aos mortos.
O local fica próximo o Cemitério dos Aflitos, destinado ao sepultamento de escravizados e excomungados.
As velas não apagavam com chuva ou vento. Ao longo do tempo isso foi se intensificando, sobretudo por essas mulheres. Se não fossem por elas, nem saberíamos da história de Chaguinhas porque são elas que sustentam toda essa religiosidade
Wesley Vieira
As velas, que antes eram acendidas no local de execução, hoje estão na Capela dos Aflitos, onde Chaguinhas permaneceu em uma cela nos seus últimos momentos de vida.
Elas fazem parte de um culto realizado por dezenas de devotos que pedem apoio a ele, hoje conhecido também como "Protetor dos Excluídos".
O rito consiste em escrever um pedido no papel, colocá-lo na porta da cela e bater nela três vezes, em alusão às três tentativas de enforcamento. Após isso, é necessário acender uma vela no velário.
Milagres
O professor de antropologia Silvo Di Sant'Anna, 61, conta que foi um dos contemplados pelos "milagres" de Chaguinhas.
Ao decidir se aposentar, ele encontrou uma série de obstáculos. "Estava tudo muito enrolado. Tinham muitas coisas obscuras no processo e decidi fazer o ritual. Fui lá na porta, dei as batidinhas, fiz o pedido e, mais tarde, alcancei minha aposentadoria."
Hoje, ele é coordenador da Irmandade da Devoção ao Glorioso Chaguinhas, um grupo de reza inter-religioso que abraça devotos de todas as cores e credos.
"Temos pessoas que são do candomblé, da umbanda, do catolicismo, do espiritismo kardecista... e que fazem parte dessa irmandade. Ali, temos muitos relatos de graças alcançadas."
O grupo reúne-se mensalmente para rezar o terço de Chaguinhas, nomeado como Glorichá. Cada conta do rosário tem uma cor diferente em homenagem a um Orixá, além das contas rosas, que fazem alusão às "mulheres negras que tiveram a ousadia de ir lá acender vela para um criminoso", segundo Di Sant'Anna.
A gente reza o terço do Chaguinhas, com orações católicas. É um itinerário da vida dele, desde que se levantou em Santos com os companheiros para lutar contra a exploração até chegar à sua morte e nos milagres
Silvo Di Sant'Anna
"Além disso, oferecemos um espaço para as pessoas serem ouvidas, se manifestarem. Naquele momento, se alguém não tem outro espaço para se expressar, pode encontrar um ali no púlpito. E nós respondemos. A reza do terço é um grande diálogo", explica ele.
Patrimônio da cidade
O rito de Chaguinhas está em processo para se tornar Patrimônio Cultural Imaterial do Estado.
Um projeto de lei assinado pela deputada Leci Brandão (PCdoB-SP) fez o pedido. O texto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e agora encontra-se na Comissão de Educação e Cultura, sob relatoria da deputada Professora Bebel (PT-SP).
"A história também é visual e o jeito como tratamos nossas memórias e territórios históricos diz muito sobre a importância que damos a eles. Se algo é importante, precisa ser visto, destacado, cuidado", disse Leci Brandão, em nota enviada ao UOL.
É esse o caso do culto ao Chaguinhas, da Capela dos Aflitos, do cemitério público que ali funcionou e de tantos locais no centro de São Paulo que foram invisibilizados e, por que não dizer, escondidos por homens públicos que nunca se interessaram em cuidar da memória de nossa cidade como deveriam. Sabemos que o racismo é o grande culpado
Para Vieira, recuperar a memória de Chaguinhas e do culto que leva o nome dele é uma forma de apresentar outra história sobre a formação da cidade.
"A narrativa de formação de São Paulo vai contar a história de uma cidade formada por bandeirantes e desenvolvida por imigrantes. A população negra e indígena não está presente. É importante contar essa história porque é uma contra-narrativa, nos livrando do perigo da história única, deixando que a construção da cidade seja mais plural e inclusiva."
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