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'Bebem de tudo': cortejo fúnebre com cachaça e vira-lata vira hit no TikTok

Do UOL, em São Paulo

18/05/2023 04h00Atualizada em 18/05/2023 12h27

Velório combina com cachaça? Em São João do Abade, povoado de Curuçá (PA), isso é tradição. Conhecido como cortejo fúnebre do Frete, o rito ganhou destaque nesta semana no TikTok, quando a designer de sobrancelhas Beatriz Costa, 21, compartilhou imagens do sepultamento da avó, que morreu no final de abril.

"Quando fiz o vídeo, pensei que não iria viralizar. Fiquei muito surpresa", contou ela ao UOL. Nas imagens, familiares e amigos de Beatriz aparecem em cortejo de cerca de 5 km levando o caixão da avó dela nas ruas do povoado até o cemitério São Bonifácio, em Curaçá. O trajeto é regado a cachaça, brincadeiras e tem até a participação animada de um cachorro vira-lata. O rito chamou atenção das pessoas na rede social. "Se meu enterro não for assim, nem vale a pena morrer", diz um dos comentários.

Vivendo em Castanhal (PA), mas visitando regularmente os avós em São João do Abade, Beatriz diz que cresceu acostumada com o Frete. "É uma tradição da cidade. Eu já participei de vários, inclusive de pessoas que não conhecia. Na minha família sempre foi assim. Anos atrás o meu tio faleceu e a despedida foi a mesma."

A jovem explica que quando um abadiense morre, a família, os amigos e os vizinhos se reúnem para preparar o velório em comunidade. Durante a noite, os homens jogam baralho e dominó, e as mulheres ficam na cozinha, preparando as comidas que serão servidas aos convidados.

"Minha avó morreu pela tarde e quando cheguei já tinha café, uns três baldes de mingau, bolacha e muita gente esperando o caixão. Fazemos muito avoado, que é um cozido de peixe. É sempre uma grande fartura de comida."

@beatrizf_costa19

Lembrando que isso e tradição em carregar o caixão na mão ate o cemitério, as pesssoas levam sua cachaça e andam mais de 4km com o caixão na mão Do abade pra Curuça

? A Grande Família - Dudu Nobre

No decorrer da noite, conforme a tradição, as memórias da avó foram revividas entre os convidados. "Conversávamos sobre como era a risada dela, como era uma pessoa feliz. Geralmente, é quando falamos dos bons momentos da pessoa falecida. Isso é muito legal e reconfortante. A família está triste, mas quando chegam os vizinhos, os amigos, a gente consegue se distrair assim."

No dia seguinte é a vez do Frete — o cortejo até o cemitério. "Antes dele, o padre passou no velório e fez a última reza pela minha avó. Choramos muito. Às vezes as pessoas veem a alegria nas ruas, mas a família chora, sim. Chora quando o caixão chega, quando o padre vem orar, na hora de enterrar...", explica ela.

Na tradição, quatro homens próximos da pessoa falecida devem iniciar o cortejo carregando o caixão. Durante o trajeto, há um rodízio de pessoas para exercer a função.

Todo mundo deu uma salva de palmas para a minha avó e então saímos pelas ruas. Vai muita gente, até pessoas que não conhecemos, mas que gostam de participar. E o pessoal começa a reunir dinheiro para comprar cachaça. Tem 51, corote, vinho. Tudo misturado e todo mundo bebe de tudo. Tem gente que não bebe, mas tem outros que preferem beber para o caixão ficar 'mais leve'.

Ao atravessar a ponte, que faz divisa entre o povoado e o município de Curuçá, as mulheres são as que carregam o caixão até a porta do cemitério. Nesse momento, os homens que deram início ao cortejo são os responsáveis por levar o ataúde até a cova.

"Aí começa o clima de tristeza de novo porque sabe que chegou a hora, que a gente não vai ter mais a pessoa de volta. Foi nesse momento que o meu avô se despediu da minha avó."

Beatriz conta que o enterro da avó foi de muita emoção. "Antes de enterrá-la, abriram o caixão, vimos ela e a ficha foi caindo que estava na hora dela partir."

Após a cerimônia, os familiares e amigos retornam ao povoado. No caso do enterro da avó de Beatriz, a prefeitura disponibilizou um ônibus. No entanto, muitos preferiram voltar os 5 km a pé.

Tem gente que exagera na bebida e o ônibus é a melhor opção. Mas tem pessoas que podem voltar a pé. Ainda tinha muita cachaça então metade do pessoal fez isso. Voltamos rindo, brincando, até chegar nas nossas casas.

A designer de sobrancelhas conta que participar do Frete é uma forma de receber suporte em um momento de dor e luto.

"Se isso acontecesse na cidade em que moro, que é maior, as pessoas iriam achar um absurdo. Mas é uma tradição interessante. Pra mim é algo importante, que conforta. As pessoas distraíram a família por um certo momento e recebemos o apoio daqueles que gostavam dela. Ela era uma pessoa muito querida. É bom participar da tradição."

Povoado sem cemitério

Diferentemente de muitas cidades no país, São João do Abade não tem um cemitério próprio — e nem almeja um. "Seus moradores acreditam que Abade é lugar para viver e não para morrer", explica a professora Valeria Fernanda Sales, que fez uma dissertação de mestrado na UFPA sobre o tema.

Uma tentativa de construção do cemitério ocorreu na década de 1980, mas o plano falhou. Na época, um ex-vereador avançou nos diálogos com a Prefeitura de Curuçá, que cedeu um terreno. No entanto, a população interveio. "Quando souberam o que seria feito, invadiram o terreno, que hoje é um bairro chamado Sertão", descreve Valeria na pesquisa.

A tradição do Frete remonta a história do Brasil. Antes do século 19, já era um costume reunir amigos e familiares antes da morte de um ente querido. "Muitas vezes as pessoas já sabiam que iriam morrer devido ao diagnóstico de alguma doença, por exemplo. Assim, elas preparavam os seus velórios e faziam todos os rituais. Pagavam para fazer um velório bonito, reunir a família e fazer cortejos. Era um momento de confraternização e despedida."

Até então, os mortos eram enterrados próximos às igrejas católicas. Quem não era cristão poderia ter o sepultamento até mesmo no quintal da própria casa. No entanto, a prática foi interrompida no século 19, quando uma política higienista começou no país.

"Era um momento de epidemia de febre-amarela e morriam mais de 50 pessoas em Curuçá por dia. Então, surgiu a preocupação da contaminação das pessoas, delas irem para missa, por exemplo, e ficarem doentes." Foi assim, portanto, que os sepultamentos nas igrejas tornaram-se proibidos.

Com essa mudança, os abadienses começaram a enterrar os seus mortos no cemitério em Curuçá. "Provavelmente, como já não tinha mais a igreja como esse espaço sagrado, o cemitério São Bonifácio passou a ser esse lugar", diz Valeria.

A tradição do cortejo, no entanto, só ganhou nome há cerca de 25 anos, quando uma moradora, chamada Ana Lúcia Farias da Silva, interpretou que a família enlutada estivesse fretando os moradores para levar o morto nos braços até o cemitério. "Ela não gostava palavra enterro, achava-a 'pesada'", explica a professora. Hoje, Ana Lúcia é conhecida como a "Dona do Frete".

Apesar das brincadeiras, o Frete é uma tradição regada a muitas regras cujo objetivo principal é homenagear a vida daquele que se foi.

Muita gente acha que estão comemorando que o outro morreu. Mas não é isso. Tem o momento do choro, mas também o da alegria, e o da piada. A pessoa era querida e eles querem carregá-la pela última vez, querem se despedir dela. Estão comemorando a vida daquele morto.