TJ do Rio ignora STF para liberar apreensão de adolescentes sem flagrante

O pedido do governo e prefeitura do Rio de Janeiro para a Justiça autorizar a apreensão de crianças e adolescentes sem flagrante ou ordem judicial em ações policiais nas praias repetiu argumentos do antigo PSL (hoje União Brasil) rejeitados pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2019.

O que aconteceu

O presidente do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, suspendeu ontem (16) decisão da 1ª Vara de Infância e Juventude que proibia agentes de segurança do Rio de apreender e conduzir a delegacias crianças e adolescentes nas praias cariocas sem ordem judicial ou em flagrante.

A decisão do presidente do TJ atendeu a pedido conjunto do governo do estado e da Prefeitura do Rio, feito por meio de suas procuradorias.

Argumentos repetidos

No pedido, governo e prefeitura alegam que a decisão da primeira instância "subverte a lógica do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] para, de um lado, admitir que jovens sem identificação e desacompanhados vaguem por espaços públicos em situação de vulnerabilidade, abandono e perigo; e, de outro, impedir que sejam utilizados os equipamentos públicos destinados à recepção, atendimento e proteção de menores".

O argumento é parecido com os apresentados ao Supremo pelo PSL em 2005, em ação julgada improcedente em agosto de 2019.

O partido pedia que o STF declarasse inconstitucionais dois trechos do ECA: o inciso I do artigo 16, que autoriza menores de idade a "ir, vir e estar em logradouros públicos e espaços comunitários"; e o artigo 230, que pune com até dois anos de prisão quem "privar a criança e o adolescente de sua liberdade", inclusive agentes de segurança.

Segundo o PSL, nesses trechos, o ECA "quer dizer que as crianças carentes, ainda que integrantes deste quadro dantesco e desumano, não mais poderão ser recolhidas pois adquiriram o direito de permanecer na sarjeta. E os perambulantes, vadios e sem rumo na vida somente quando estivessem em flagrante de ato infracional".

Quando julgou o caso, em agosto de 2019, o STF disse que declarar as normas inconstitucionais poderia levar à violação dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes, que a Constituição manda proteger em cláusulas pétreas, conforme o voto do relator, o ministro Gilmar Mendes.

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Em seu voto, Gilmar disse que declarar inconstitucional a punição a agentes de segurança que privem crianças e adolescentes de suas liberdades seria "dar verdadeiro cheque em branco para que detenções arbitrárias, restrições indevidas à liberdade dos menores e violências de todo tipo pudessem ser livremente praticadas".

Segundo o ministro, a resposta aos problemas sociais sofridos pelos jovens não pode ser ampliar a atuação das forças de segurança. "As privações sofridas por essas crianças e adolescentes, a condição de rua desses menores, não podem ser corrigidas com novas restrições a direitos e o restabelecimento da doutrina menorista que encarava essas pessoas enquanto meros objetos da intervenção estatal", disse, no voto.

STF ignorado

Na decisão de sábado, o presidente do TJ não considerou os argumentos do Supremo nesse caso. Só disse que a decisão da 1ª instância "tem o condão de subtrair das autoridades competentes, em âmbito estadual e municipal, a avaliação acerca da configuração de situação de vulnerabilidade ou risco social".

Segundo o desembargador Ricardo Cardozo, proibir as apreensões e condução a delegacias sem flagrante ou ordem judicial causaria "grave lesão à ordem administrativa e à segurança pública". Como exemplo da necessidade desse tipo de ação, cita o caso de um jovem de 16 anos que morreu afogado na praia de Ipanema —episódio sem relação com segurança pública, portanto.

Do STF, o desembargador citou apenas uma decisão de 2009 do ministro Cezar Peluso, aposentado em 2012, e um trecho de um livro do ministro Luiz Fux publicado em 2019 sobre mandados de segurança, instrumento jurídico sem relação com o caso dos jovens nas praias da zona sul carioca. Fux votou a favor da constitucionalidade dos trechos do ECA em agosto de 2019.

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Bolsonaro

Na época do julgamento da ação pelo PSL, o ex-presidente Jair Bolsonaro, hoje no PL, era filiado ao partido.

Ele nunca comentou a ação especificamente, mas, em 2018, durante a campanha eleitoral, disse que o ECA tinha que "ser rasgado e jogado na latrina. É um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil".

Hoje, o PSL não existe mais. Em 2022, o partido se fundiu ao DEM para formar o União Brasil.

Bolsonaro deixou o PSL em novembro de 2019 e governou sem partido até novembro de 2021, quando se filiou ao PL.

Abordagens desnecessárias da Operação Verão

A decisão da 1ª instância da Justiça do Rio foi tomada a pedido do Ministério Público do estado.

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Na petição, o MP afirma que, entre 25 de novembro e 3 de dezembro, na chamada Operação Verão, agentes de segurança do Rio levaram 89 adolescentes a delegacias e aparelhos de acolhimento de crianças e adolescentes, todos eles negros. Em apenas um caso, medidas protetivas foram consideradas necessárias.

A justificativa foi que eles estavam desacompanhados e sem documentos, o que significaria situação de vulnerabilidade. Todas as abordagens foram feitas, contudo, na zona sul e em resposta à divulgação de crimes na região pela imprensa, segundo o MP-RJ.

Em sua defesa, o governo do estado disse que abordou mais de 4.000 jovens e mais de 1.700 veículos nos dois primeiros finais de semana deste mês, mas aplicou medidas protetivas a 273 crianças e adolescentes desde setembro. "Esses superlativos números desmentem a narrativa de que haveria um suposto direcionamento da operação a determinado grupo de indivíduos", diz a petição das procuradorias do estado e do município do Rio.

Histórico

A primeira vez que esse tipo de abordagem chamou atenção do MP e da Defensoria Pública do Rio foi em 2015.

Naquele ano, foram observadas operações chamadas de "sarqueamento", na gíria dos membros dessas instituições. O nome é porque o sistema em que ficam cadastradas as informações de crianças e adolescentes no Rio se chama SARQ, e a consulta a essa base de dados é chamada de "consulta SARQ".

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O "sarqueamento", conforme explicou ao UOL um defensor público que pediu para não ser identificado, era o recolhimento de adolescentes na zona sul do Rio sob a justificativa de estarem desacompanhados e sem documentos, para que fosse feita uma "consulta SARQ" em delegacias ou aparelhos de recolhimento.

Os adolescentes vinham da zona norte ou de periferias da capital fluminense. Ele comparou o "sarqueamento" a prisões para averiguação nos moldes das adotadas na ditadura militar. Para o defensor, isso está se repetindo atualmente.

Segundo esse defensor, no verão de 2015, foram apreendidos na zona sul cerca de 500 adolescentes, mas menos de 30 foram encaminhados a medidas de proteção.

Em 2018, a Justiça do Rio proibiu esse tipo de abordagem e disse que os agentes de segurança só poderiam parar crianças e adolescentes nas ruas em situações de flagrante ou com ordem judicial. A decisão transitou em julgado —ou seja, o processo chegou ao fim e não cabem mais recursos.

No dia 11 de dezembro, a Defensoria do Rio pediu ao Judiciário que fiscalize o cumprimento da decisão de 2018. Também foi pedido que as polícias do Rio apresentem "a motivação das abordagens policiais em ônibus vindo de regiões da zona norte e periferia em direção às praias do Rio de Janeiro".

A Justiça do Rio já decidiu que o governo do estado terá de indenizar os jovens prejudicados pelas abordagens policiais em R$ 1.000 cada um. O caso agora está no STJ (Superior Tribunal de Justiça), porque a Defensoria pede o aumento da indenização. Ainda não houve decisão final.

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