Indígenas criam leis próprias para combater violência contra mulheres
Comunidades indígenas de Roraima têm criado leis próprias para responsabilizar homens, da mesma etnia, que cometem crimes relacionados à violência contra mulheres. Casos considerados de menor gravidade são resolvidos dentro das comunidades.
'Cada cultura, uma organização'
Mulheres indígenas podem recorrer a um grupo de lideranças da comunidade onde vivem para relatar ameaças e agressões. Em Roraima, muitas regiões têm adotado "regimentos internos" para resolver casos de violência doméstica e de gênero.
A ideia de criar leis próprias começou a ganhar força quando as indígenas perceberam que vítimas de violência sentem medo de relatar crime às autoridades policiais. Segundo a coordenadora-geral da organização das mulheres indígenas de Roraima, Norma Mailey Tavares dos Santos, 38, muitas desistem de denunciar os episódios.
Os regimentos são criados pelas lideranças e cada caso é discutido por uma comissão. "Eles decidem com base no consenso da sociedade indígena", afirma Kelliane Wapichana, secretária do Movimento de Mulheres do Conselho Indígena de Roraima. "Isso tem deixado as lideranças mais atentas aos casos."
O conselho de lideranças indígenas se reúne com o casal, analisa os relatos e decide como responsabilizar o autor do delito. "Além da decisão sobre como penalizar, existe uma conscientização entre as partes", diz Kelliane.
Casos de maior gravidade, como estupros e homicídios, são levados também às autoridades policiais. "Temos um departamento jurídico que nos acompanha e ajuda com isso", pontua Kelliane. Segundo a liderança da comunidade indígena Pium, o Tuxaua Lázaro, são acionados agentes de segurança, o MPF (Ministério Público Federal) e comarcas da região.
Precisamos ouvir a lei dos karawais [não-indígenas], como a Lei Maria da Penha, mas cada povo tem seu modo de viver, tem a sua cultura. Levamos essas informações para as comunidades para que eles se atentem que as leis dos não-indígenas funcionam em conjunto às nossas.
Kelliane Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima
Como funcionam as leis indígenas
A comunidade Pium, na Terra Indígena Manoá-Pium, região Serra da Lua — localizada no município de Bonfim — resolve conflitos de violência doméstica com base em suas leis. O documento foi elaborado pela comunidade ao longo dos últimos cinco anos e inclui formas de organização social que abrangem temas relacionados à saúde, educação, território, mulheres e segurança.
Os regimentos são escritos em português e depois traduzidos para todas as línguas indígenas das regiões em que serão aplicados. A autonomia para criar os regimentos é garantida aos indígenas pela Constituição Federal — que prevê o direito à organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e direitos sobre terras.
Os líderes da comunidade junto às comissões responsabilizam os agressores e controlam se a atribuição imposta é cumprida. "Eles têm o compromisso de cumprir. Caso contrário, fazemos uma denúncia. Primeiro, fazemos a justiça comunitária indígena, depois, a justiça dos brancos."
Se o indígena penalizado não cumprir a tarefa imposta, ele será julgado por setores que incluem professores, brigadistas, mulheres e jovens. "Um crime contra mulheres é julgado por mulheres", diz Tuxaua Lázaro.
Da prestação de serviços ao 'conselho final'
Casos de violência doméstica podem ser penalizados com ao menos cinco anos de prestação de serviço comunitário. Autores de feminicídios são punidos com 15 anos de prestação de serviços e autores de estupros, com 30. Nesses últimos delitos, os casos são encaminhados para autoridades de segurança e jurídica.
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Quero receberO autor do delito precisa também assinar uma folha de presença nos serviços comunitários controlada pela comissão indígena da comunidade. O tempo e a qualidade do serviço são avaliados mensalmente. Ao final do período, há o "conselho final" — um julgamento do autor. A palavra final é do tuxauá, a liderança indígena eleita pela comunidade.
O caso recente de um estupro coletivo ocorrido contra uma criança yanomami de 11 anos não passou pelo regimento interno indígena — foi na capital Boa Vista. Para Tuxaua Lázaro, o episódio acende o alerta para o uso das leis próprias de forma conjunta aos mecanismos punitivos. "Peço que construam o regimento interno. Espero que ele se expanda para outras comunidades."
Mais comunidades planejam adotar os regimentos internos nos primeiros meses de 2024. A Renascer, na região Surumu, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, é uma delas.
Um dos motivos pelos quais os regimentos são defendidos pelos indígenas é que os casos não terminam somente com a punição por meio do sistema prisional. "A gente não quer ver nossos parentes [indígenas] na delegacia ou na cadeia, queremos ter um diálogo. Quando a polícia vem, não quer saber o que aconteceu", diz Kelliane.
Drogas, álcool e agressões
O consumo de drogas e bebidas alcoólicas nas comunidades indígenas é apontado como um dos principais fatores por trás dos casos de violência doméstica. A coordenadora-geral da organização das mulheres indígenas de Roraima, Norma Mailey Tavares dos Santos, 38, conta que nos fins de semana — quando o consumo de álcool aumenta em festas — surgem mais relatos de violência contra as mulheres.
Moradora de Guariba, região norte do estado, Norma atua em ao menos dez municípios acolhendo mulheres indígenas. "Acionamos a polícia, mas quando as autoridades chegam, muitas negam o ocorrido, apesar das marcas roxas e hematomas." Em casos como esses, quem aciona a polícia são os tuxauas.
Casos de violência moral e psicológica não costumam ser identificados facilmente pelas lideranças. Segundo a socióloga e integrante do Coletivo Feminista Núcleo de Mulheres de Roraima, Andrea Vasconcelos, episódios de violência física e sexual costumam chegar mais aos tuxauas.
Além o medo de denunciar, em geral mulheres indígenas não têm acesso a celulares ou internet para facilitar os registros. A conselheira da Organização das Mulheres Indígenas de Roraima, Gabriela Nascimento Peixoto, 39, diz ainda que elas temem ficar estigmatizadas na comunidade.
Gabriela lembra do caso de uma mulher que era impedida de trabalhar fora de casa pelo marido. "Existe muito machismo nas comunidades indígenas, o homem reconhece a mulher como dependente dele."
Tenho a convicção de que se o regimento interno for aplicado, as coisas são bem resolvidas. Se não fossem nossas leis, os números seriam maiores.
Kelliane Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima
O que dizem as autoridades
O governo de Roraima informou que áreas indígenas são de competência da União e que "o Estado pode intervir em áreas federais somente se provocado ou solicitado apoio". A administração estadual disse ainda que "o aumento de registros relativos a esse tipo de violência é devido ao fato de a Rede de Proteção à Mulher no Estado ser bem estruturada e integrada."
O UOL procurou o Ministério dos Povos Indígenas, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.
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