Grávida dá à luz em privada de penitenciária em São Paulo, diz Defensoria
Uma detenta grávida, sem atendimento adequado na Penitenciária Feminina da Capital, acabou dando à luz quando usava o vaso sanitário. Esse e outros descasos com gestantes, na ala materno-infantil da prisão, na zona norte de São Paulo, foram descritos pela Defensoria Pública em um relatório oficial. A SAP (Secretaria Estadual de Administração Penitenciária) diz que presta assistência às presas.
O que aconteceu
Andressa (nome fictício)*, de 24 anos, passou dois dias com dores de parto, em maio do ano passado. A enfermaria da penitenciária, porém, não levou a paciente para o hospital e a diagnosticou com pedra no rim.
"No dia seguinte, ela foi ao banheiro e deu à luz no vaso sanitário", descreve a Defensoria Pública de São Paulo no relatório, após vistoriar a prisão. As outras presas da ala teriam ajudado Andressa a socorrer o recém-nascido.
A enfermeira da unidade afirmou que "seria difícil que o bebê sobrevivesse", diz o relatório. A menina nasceu prematura, com 28 semanas.
Levado a um hospital —onde passou pela UTI neonatal—, o bebê só recebeu alta dois meses depois. Nesse período, a mãe não pôde visitar a filha com a frequência necessária, já que faltava motorista na penitenciária para levá-la ao hospital três vezes por semana, como previsto.
A SAP afirma em nota que a mulher foi "imediatamente socorrida". Tanto a mãe quanto o bebê foram encaminhados imediatamente ao hospital, diz em nota.
No período em que a criança esteve internada em UTI neonatal, a mãe a visitava para que fosse mantido o vínculo, e era levada pela equipe da própria unidade.
SAP
A Assistência Social pediu à Justiça que a criança fosse retirada da mãe ao completar seis meses. A justificativa era de que Andressa tinha histórico de dependência química e havia "riscos sociais" para a menina se ela continuasse com a mãe.
O relatório técnico do hospital, porém, informava que Andressa criou vínculos com a filha. "Foi relatado que a mãe visitava a criança, (...) possui vínculo afetivo e desejo de exercer a maternidade", diz a Defensoria Pública.
Não foram identificados riscos sociais para que a criança permanecesse sob os cuidados da genitora na unidade prisional.
Relatório da Defensoria Pública de São Paulo
A criança foi levada para o Saica (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes). "Um bebê só deve ser levado para um desses abrigos públicos quando a mãe não deseja criá-lo e não há familiar disposto a assumir a guarda", explica a defensora pública Camila Galvão Tourinho.
A SAP disse que "a decisão pelo abrigamento da criança foi da Vara da Infância e da Juventude".
Demora para socorrer gestante
As dores das gestantes presas são tratadas apenas com dipirona ou paracetamol, segundo o relatório. Medicada dessa forma, outra gestante só teria sido levada ao hospital quando já estava com sete dedos de dilatação.
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Quero receberQuando precisam ir a consultas externas, as presas tomam banho gelado. Duas delas disseram que esperaram das 8h30 às 13h30 para serem levadas ao pré-natal, sem direito a café da manhã, segundo o documento.
Nesses dias, elas ficariam sem alimentação, roupas de frio e proibidas de usar meias. Em alguns casos, acabam perdendo a consulta por demora para serem levadas ao atendimento médico.
Frio, mofo e comida estragada
O relatório indica que a ala materno-infantil precisava de reforma. O documento relata "mofo e infiltração nas paredes e teto", lâmpadas queimadas no corredor e frestas nas paredes perto das camas que tornam "o frio na ala insuportável".
O matagal nos fundos do local provoca "infestação de pernilongos e baratas". "Os bebês são constantemente picados" já que a unidade proíbe o uso de repelentes sem receita médica, escrevem os defensores públicos.
As refeições foram avaliadas como "péssimas". "São servidos ovo praticamente cru, arroz com casca, feijão com impurezas, legumes com casca e sem lavar", aponta o relatório.
O café da manhã é "um dedo de café, um copo de leite com um ou dois pães". O lanche das 13h30 é a sobra da comida do dia anterior, diz o texto. As detentas ficariam das 16h30 às 7h sem comer —14 horas e meia de "jejum forçado".
Todas as presas da ala narraram que a carne é servida estragada com frequência [causando] fortes dores de barriga.
Relatório da Defensoria Pública
Para beber, as presas enchem um galão com água da torneira. Sem água filtrada e racionamento das 23h às 5h, as mulheres relatam vômito e diarreia em razão da "alimentação de péssima qualidade". "O odor é insuportável", reclamam.
A secretaria diz que os relatos "não condizem com a realidade da penitenciária". A unidade "preza pelo atendimento humanizado das reclusas", diz a SAP, com a oferta e "refeições de qualidade", consumidas também pelos funcionários.
A SAP afirma que distribui repelentes infantis às mães e autoriza a entrega presencial ou pelos Correios "sem necessidade de prescrição médica".
As celas deterioradas mostradas no relatório estavam na época interditadas justamente para manutenção, que já foi realizada.
SAP
Crime de tortura?
Se confirmado, o tratamento dispensado às gestantes na Penitenciária Feminina da Capital pode ser considerado tortura, afirma a defensora pública Camila Tourinho. A lei 9.455, de 1997, considera crime de tortura submeter alguém, sob guarda do Estado, "a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo".
A legislação garante aos presos o direito à alimentação adequada e água potável, mas o que vemos é a imposição de penas de fome e de sede. A falta desses direitos pode configurar crime de tortura e gerar a responsabilização do Estado, a quem cabe fazer a gestão das unidades prisionais.
Camila Galvão Tourinho, defensora pública
*Os nomes foram trocados para preservar a identidade.
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