R$ 2 ou girar a roleta: por que vídeos de doação atraem milhões de pessoas?

Se você usa rede social, principalmente o TikTok, deve ter visto vídeos com a seguintes chamadas: 'Dois reais ou girar a roleta?', ou 'Dois reais ou um presente misterioso?'. Os vídeos fazem parte de um movimento batizado pelos norte-americanos como "filantropia digital", iniciado pelo influenciador Jimmy Donaldson (mais conhecido nas redes como MrBeast).

Os conteúdos, que mostram influenciadores dando dinheiro para desconhecidos, vêm conquistando uma legião de internautas em todo o Brasil. Seus praticantes atraem milhões de seguidores, que geram centenas de milhões de visualizações em seus vídeos.

Estimulados pelo engajamento rápido e em massa do público, já registrado nas iniciativas de produtores de conteúdo norte-americanos, influencers brasileiros ouvidos pelo UOL afirmam que criam esses vídeos para exercitar atos de bondade e ajudar outras pessoas. Mas, para o mestre em Psicologia Social da USP, Vitor Muramatsu, essas ações são "insidiosas" porque se aproveitam da empatia e da identificação imediata do público com a pessoa que está recebendo auxílio.

O que os influenciadores fazem e por que doam dinheiro?

Willian Braz, influenciador digital, iniciou sua jornada rumo a esse movimento enquanto morava nos Estados Unidos, onde engraxava sapatos. Ele conta que se sensibilizou com a situação dos moradores de rua e percebeu que o problema "não era relacionado ao país, mas à mentalidade das pessoas que desistiam de si mesmas".

Após mudar para a Inglaterra, Willian iniciou suas ações filantrópicas. Trabalhando como motoboy, ele distribuía alimentos que sobravam das entregas aos moradores de rua. Com o tempo, ele diz que aumentou suas contribuições, destinando uma porcentagem de seu salário para auxiliar os necessitados.

De volta ao Brasil, Willian, hoje conhecido como Willian da Bondade, continuou realizando ações que considera filantrópicas, financiado por investimentos que manteve na Europa. No campo dos experimentos sociais, Willian finge em seus vídeos precisar de ajuda para testar a generosidade das pessoas e depois as recompensa. Ou então, ele oferece a desconhecidos a escolha entre um presente misterioso, ou uma quantia em dinheiro.

Vivenciei várias experiências emocionantes, como a de Maicon, um jovem sem braços e pernas que ganhou uma cadeira de rodas motorizada. Ou a Daiane, que perdeu uma perna para o câncer e vendia balas com muletas; com a ajuda dos meus seguidores, conseguimos uma perna mecânica para ela. Há também Sandra, que recebeu uma nova geladeira, e Dona Ivonete, que ganhou uma prótese dentária completa, que custaria mais de R$ 25 mil. Essas são ações transformadoras.
Willian Braz

O influenciador explica que suas ações são realizadas com o apoio financeiro de seus seguidores, por meio de vaquinhas online. Ao todo, são 4,8 milhões de pessoas, divididas entre as plataformas Instagram, Facebook, TikTok e YouTube. E também com a monetização dos vídeos nessas plataformas, que contam com milhões de visualizações. Com o tempo, ele passou a receber mais doações, permitindo que ajudasse mais pessoas em diversas partes do Brasil.

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Com essas ações consigo aumentar a quantidade de valores que eu dou. Antes eu dava, sei lá, de R$ 50 até R$ 500. Mas hoje consigo dar muito mais do que isso, consigo comprar coisas muito mais caras do que eu dava no começo dos meus vídeos, graças ao engajamento dos meus seguidores. O maior prêmio já pago será agora, no segundo semestre, de R$ 100 mil, a uma senhora em necessidade. Estamos estudando formas de entregar esse auxílio, para que não gere briga em família, ou seja gasto erradamente. Talvez pagando adiantado o aluguel de uma casa enquanto ela viver.
Willian Braz

O influencer foi questionado pela reportagem sobre críticas devido aos vídeos publicados. "Sempre vai ter um ou outro falando alguma coisa ruim. Acho que se você pensar no próximo, claro, postar você pode, mas não sendo ruim para quem está sendo mostrado nos vídeos, não difamando a imagem da pessoa que está sendo postada, acho que não tem problema algum, né?"

Da música aos experimentos sociais

Formado em administração, o influencer Ilan Kriger engaja mais de 10 milhões de seguidores nas plataformas, um público fã de seus vídeos, em que distribui dinheiro a pessoas que encontra nas ruas. Ele iniciou nas redes falando de música, como DJ (NextLevelDJ), mas gradualmente foi sendo reconhecido como o "Moço do Te Amo", por dizer sempre que ama as pessoas que participam de seus quadros, ao final dos vídeos.

A guinada ocorreu em 2022, quando ele mudou seu foco para "pegadinhas do bem" e experimentos sociais, após um vídeo viral de uma brincadeira nas ruas, que alcançou 3,2 milhões de visualizações. Inspirado por criadores norte-americanos como MD Motivator e Jimmy Dartz, ele começou a criar conteúdo ajudando pessoas na rua.

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O dinheiro para ajudar essas pessoas vem das visualizações dos vídeos em plataformas como TikTok, Kuai, YouTube e Facebook. No início, eu fazia tudo sozinho, mas com o crescimento do trabalho, passei a contar com a ajuda de um cinegrafista e, mais tarde, uma agência. Uma virada significativa foi o vídeo da Dona Vicentina, uma senhora que vendia panos para sustentar três netos. Comprei todo o estoque dela, resultando em uma onda de apoio online, com muitos seguidores querendo ajudar.
Ilan Kriger

O influencer varia seu conteúdo entre novos desafios e brincadeiras repetidas, como atividades físicas e quizzes. Um caso triste, lembra, foi o de uma mulher chamada Sandra, que recebeu 40 mil reais de uma vaquinha, mas faleceu antes de poder usufruir do dinheiro.

Outro caso marcante foi um vídeo que ele gravou com um homem em situação de rua, que recebeu ajuda para cortar o cabelo e dinheiro para começar a trabalhar em um restaurante. Ele agora trabalha com Ilan, mostrando o impacto positivo dessas ações.

Ilan evita promover apostas e rifas, pois acredita que isso pode prejudicar sua comunidade. Seu maior prêmio foi dado em um vídeo onde ofereceu até R$ 900 para uma pessoa cortar o cabelo, dobrando o valor em uma roleta. Porém, os maiores valores totais já repassados, de maneira indireta, são as vaquinhas online que já aconteceram e arrecadaram de R$ 10 mil a R$ 50 mil por campanha.

Acho que o que me move de uma maneira mais ampla é esse propósito de realizar um milhão de sonhos. Eu me inspiro muito no Mr. Beast, que é o youtuber número 1 do mundo, e ele também faz um trabalho de filantropia e ele consegue fazer ações, que ele dá mil próteses, ele faz mil operações de cataratas e por aí vai, então é o que realmente me move. Ajudar as pessoas e ver a sua participação.
Ilan Kriger

No caso do influenciador, o hate veio por causa do famoso slogan que usa em seus vídeos: 'eu te amo'. "Tem pessoas que nunca escutaram 'eu te amo' do marido, da esposa, do pai, da mãe, do filho e eles acabam estranhando esse tipo de coisa. E de uma certa maneira, antes de eu adotar esse nome, eu recebia um pouco de ódio, né? As pessoas vinham e criticavam. Era normal eu publicar o vídeo e ficar meio que atento para poder rebater esses comentários e não deixar se transformar numa coisa muito negativa.

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Especialista critica as ações

Vitor Muramatsu, mestre em psicologia social e pesquisador do Instituto de Psicologia da USP, afirma que cientistas sociais, filósofos e psicólogos já avisavam, desde o século passado, sobre a alienação de si através do consumo desmedido promovido pela comunicação de massas. Com a chegada da internet, o canal de consumo migrou do rádio, jornal e televisão para a tela do smartphone.

Segundo o especialista, muitas pessoas sentem um vazio existencial e tentam preencher essa lacuna com hiperconsumismo, seja comprando roupas, assistindo seriados ou buscando cenários instagramáveis.

O vício na internet e no consumo de conteúdos online baseia-se em uma lógica ilusória de que o usuário é o protagonista, explica o pesquisador. O ego, ávido por amor e atenção, sente-se no controle ao clicar e interagir, dando a falsa ilusão de escolha e poder. "Isso explica o porquê desse tipo de vídeo atrair a atenção de tantas pessoas", diz o pesquisador.

Essas ações online ativam nosso cérebro emocional, liberando hormônios como dopamina, endorfina, ocitocina e serotonina, criando um ciclo vicioso. Assim, passamos horas consumindo conteúdos sem prazer real, deixando a vida verdadeira passar diante de nós, perdendo experiências significativas e memoráveis.

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Os chamados 'influenciadores do bem' representam um teatro do consumo, onde algo de grande valor, como dinheiro, é dado sem esforço. Nosso cérebro, sempre em busca de vantagem, considera fascinante a ideia de alguém receber dinheiro de graça. Ver um ato de bondade é recompensador, mas essas "pegadinhas do bem" usam a bondade para aumentar engajamento e seguidores.
Vitor Muramatsu

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