Negros são 14% dos juízes, mas maioria de condenados injustamente no Brasil

De acordo com recente relatório do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), apenas 14,2% dos juízes do Brasil são negros. Para juristas, defensores e órgãos, há evidências de que baixa representatividade influencia o significativo número de prisões irregulares de negros.

O que aconteceu

A ausência de juízes negros nas cortes pode preponderar decisões com base em racismo estrutural. Especialistas ouvidos pelo UOL apontam para uma realidade que envolve dificuldades para entrada de negros na magistratura e falta de "sensibilidade" pelas provas e históricos de réus.

Maior fatia de negros está nas cortes eleitorais. A menor, em instâncias estaduais e federais. De acordo com o levantamento feito pelo UOL junto ao CNJ, na Justiça Estadual, onde são julgados a maior parte dos crimes, apenas 13,1% dos juízes são negros. Nas cortes, 1,8% se consideram amarelos e 0,2% indígenas.

No andar superior, o federal, só 11,6% dos magistrados são negros. O menor percentual fica na Justiça Militar, com 6,7% de negros. De acordo com o Censo de 2022, 55,5% dos brasileiros se consideram negros.

"Há correlação entre falta de negros nos tribunais com negros presos de forma injusta", diz governo. Ana Miria Carinhanha, diretora de ações governamentais do Ministério da Igualdade Racial (MIR), acredita que juízes brancos podem não levar em consideração aspectos que não vivem, podendo culminar em uma espécie de descuido na sentença.

Em um levantamento da Folha de S. Paulo com o UOL em 2021 mostrou que dos 100 casos de prisões injustas avaliados, 60% das pessoas falsamente acusadas eram negras.

Casos de prisões irregulares

Em abril, o professor de educação física Clayton Ferreira, que é negro, foi preso temporariamente por um sequestro cometido enquanto ele dava aula a 200 km do local da ocorrência. A diretoria da escola estadual que lecionava, segundo apurou o UOL, encaminhou documentos à Justiça afirmando que o homem trabalhava no momento do crime.

Ele ficou três dias privado de liberdade por conta de um reconhecimento fotográfico — o caso segue tramitando na Justiça.

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A gente fica questionando o porquê. É por causa da minha cor, da minha pele, por que eu sou pobre? Mesmo você não querendo pensar nesse fato, acaba que é muito influenciado. É muito forte essa questão do negro, mesmo você não querendo acreditar. Você está na frente de uma autoridade e tem essa dúvida: será que é ou não é? A gente pode ter uma percepção em que a gente vê um peso, uma medida, pela sua raça, etnia
Clayton Ferreira, em entrevista ao UOL

Recentemente, também, Carlos Edmilson da Silva, homem negro de 36 anos, foi inocentado após ficar 12 anos na prisão por uma série de acusações de estupro. Exames de DNA demandados anos após a prisão, comprovaram que outra pessoa cometeu o crime.

O homem só teve sua sentença revogada após auxílio do Innocence Project Brasil. De acordo com a presidente da associação, Flávia Rahal, a entidade só entra na defesa quando existem "fortes indícios de inocência" do réu, ou, como aconteceu com Edmilson, "grande fragilidade" nas provas.

Ainda segundo levantamento com dados do IDDD e Innocence Project, em casos de reconhecimento incorreto, 71,5% dos presos incorretamente são negros. No caso de Edmilson, ele também foi alvo de um reconhecimento equivocado, segundo confirmou o TJSP e o STJ — instâncias que revisaram a pena.

Minoria no magistrado, maioria de presos injustamente

Há um consenso entre a comunidade jurídica sobre a relação entre os fatores. Fábio Esteves, um de quatro juízes negros no STF, que atua como auxiliar do ministro Edson Fachin, afirma que não tem base empírica entre os dois fatores, mas que o racismo estrutural é "espelhado" nas instituições.

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Homem, negro e pobre é o perfil do injustiçado no Brasil. Flavia, advogada fundadora do Innocence Project Brasil, organização que atua para reverter casos de erros processuais, explica que o dilema das injustiças é baseado em um racismo sistêmico na sociedade - que se perpetua no judiciário.

A gente pode afirmar, de fato, existe um racismo estrutural. A gente tem um percentual de pessoas negras diferente do que o Brasil representa na magistratura. É possível afirmar que existe uma racialização de todo o sistema, da polícia aos tribunais. Várias causas explicam e isso leva uma pessoa negra ter quatro vezes mais chances de ser preso.
Fábio Esteves, juiz auxiliar do STF

É uma cadeia de erros que vão se sucedendo. Pouca prova na maior parte dos fatos e isso vai se repetindo em juízo. Há pouca exigência de uma prova bem feita. Inegavelmente a gente vê nos casos de injustiça que a questão racial é motor para que erros aconteçam. Indicaria uma mudança se houvesse mais representatividade (nos tribunais). Juízes que representassem a maior parte dos brasileiros talvez fossem mais sensíveis às questões que afligem a sociedade.
Flavia Rahal, presidente do Innocence Project Brasil

É importante a gente compreender que os juízes, além de exercerem ali uma atividade profissional, eles julgam e o ato de julgar. Ele (o ato) está ligado com as perspectivas de vida desses juízes. Então a racialização no processo vai muito além do que uma perspectiva objetiva. A gente aprende na faculdade que o julgamento é objetivo, mas ele não é. Um sentimento de não-entendimento, por um sentimento de racismo, mesmo adversarial, colocado ali, beneficia sujeitos em detrimento de outros.
Ana Miria Carinhanha, Diretora de Ações Governamentais MIR

Políticas afirmativas

A resolução 203 de 2015, do CNJ, estabelece cota de 20% nos concursos de magistratura no Brasil para negros. No entanto, a medida é alvo de críticas entre os próprios juízes negros, por ser aplicada apenas na primeira fase dos concursos.

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Nosso concurso é diferente de outras áreas, que têm única fase. Nosso concurso são quatro fases, só se leva em conta a cota na primeira fase, sendo que na sequência tem sustentação oral, outras provas. Com isso, temos 800 vagas que não são preenchidas. A cada 5, cumpre uma ou duas. Aí não se leva em consideração o modelo de concurso, a necessidade de trabalhar e estudar, de se deslocar para provas. Então não mobiliza o acesso.
Fábio Esteves, juiz

Pessoas negras, de acordo com o juiz auxiliar do STF, muitas vezes enfrentam a ausência de tempo para estudar para o exame - assim como ocorreu com ele. "Existe uma estrutura que bloqueou os negros ao espaço da magistratura. A gente tem uma manutenção de um tipo de acesso e o perfil é hegemônico", conclui.

São carreiras que demandam tempo e qualidade de estudo. Muitas vezes as pessoas que passam nos concursos são pessoas com famílias que têm papel importante de subsidiar os estudos. É difícil conseguir trabalhar e, ao mesmo tempo, estudar para fazer esses concursos. Há uma dinâmica racializada no país, onde as oportunidades são diferentes. Os efeitos da violência, dos estigmas, discriminação, são vividos de maneira desproporcional entre pessoas negras e brancas.
Ana Miria Carinhanha, Diretora de Ações Governamentais do MIR

O MIR informou ao UOL que tem participado de ações conjuntas ao CNJ em projetos para concessão de bolsas de estudo para negros e integrado discussões junto ao Fonaer (Fórum Nacional do Poder Judiciário para Equidade Racial). "Nesse fórum, são elaborados estudos, são propostas, medidas, de uma maneira geral, para o enfrentamento ao racismo e para a promoção da equidade racial", complementa Ana Míria.

A reportagem procurou o Ministério dos Direitos Humanos para tratar sobre os casos de injustiça e sobre a ausência de negros no Judiciário, mas não obteve resposta.

Bolsas para magistratura

Bolsas de R$ 3 mil por mês por dois anos para candidatos. Em abril, o CNJ em parceria com a FGV, publicou edital para buscar financiadores de bolsas de estudo para magistratura com o objetivo de beneficiar pessoas negras e indígenas. Empresas que querem contribuir têm até 28 de junho para se prontificar.

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Os especialistas acreditam que um Brasil mais justo passa, também, por maiores oportunidades para uma magistratura mais diversa. Graças aos poucos negros no STF, como narra Esteves, foi possível discutir, por exemplo, a questão do reconhecimento fotográfico — que já não pode mais fundamentar prisões.

Há muitos estranhamentos, mas a gente vai conquistando o espaço, abrindo caminho. O nosso desejo é alcançar proporcionalidade.
Fábio Esteves, juiz auxiliar do STF

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