Ele estampou moeda sem saber: 'Simboliza luta, mas não somos reconhecidos'
O aposentado Jorge Benjamim, 62, era funcionário da Casa da Moeda quando foi convidado para tirar fotos que integrariam um projeto até então secreto.
Ele conta que só foi descobrir do que se tratava quando uma moeda foi lançada e uma repórter decidiu entrevistá-lo por ele ser o "homem que estampa a moeda".
O ano era 1988 e a Casa da Moeda celebrava o centenário da abolição da escravidão. Como uma homenagem à data, a ideia era colocar em circulação moedas de 100 cruzeiros com os rostos de pessoas que representassem a família afro-brasileira —e Benjamim foi um deles.
Das fotos à moeda
Benjamim, que também era atleta, conheceu a Casa da Moeda por um grupo de corredores aos 26 anos. "Eles trabalhavam ali e me levaram para conhecer. Acabei entrando na equipe dos corredores e, mais tarde, comecei a trabalhar na Casa da Moeda. Entrei como servente, fazia parte da manutenção, da limpeza."
Em um determinado dia de trabalho, ele conta que foi chamado para uma sessão de fotos —sem saber detalhes sobre o projeto. "Fui convidado pelos artistas envolvidos. Sem questionar muito, topei, disse que tudo bem fazer a foto. Na época, eles disseram que não poderiam revelar o que era porque ainda estavam buscando elementos para compor o projeto para que só depois ele fosse divulgado. E, no caso, mais pessoas também tirariam a foto, então não teriam certeza se eu seria o selecionado."
A equipe responsável pelo projeto ficou de avisar Benjamim sobre a seleção —o que, segundo ele, nunca aconteceu. "Tirei as fotos, inclusive sem camisa, e eles falaram que era para eu aguardar porque, se fosse aprovado, eles me comunicariam. E, para minha surpresa, as minhas fotos tinham sido escolhidas para o projeto. Mas só fiquei sabendo quando saiu no jornal."
Na época, uma reportagem da TV Globo estava divulgando a história. "Um colega viu que iriam soltar a reportagem falando sobre a moeda comemorativa. Ele me avisou e, quando a repórter soube que era eu, perguntou se eu estava na empresa, e fez uma gravação comigo. Depois, outras emissoras me procuraram."
No começo, me senti estranho, mas depois fiquei alegre por estar numa moeda. Foi uma coisa muito emocionante, gratificante. Foi nessa hora que soube que as fotos foram tiradas para isso.
Jorge Benjamim
Além de Benjamim, outras três pessoas também serviram de modelo. São elas: Genilda, hoje com 77 anos, e Jefferson, atualmente com 38 anos. Eles formavam uma família afro-brasileira, o "Trio Axé", com a representação de um pai, uma mãe e uma criança.
O Jefferson era criança na época, ficava na creche que tinha para os pais que eram funcionários. A Genilda trabalhava na Casa da Moeda, mas eu quase não tinha contato com ela, porque era de outra área. Fui conhecê-los recentemente. Eu e Genilda trabalhamos juntos a vida toda sem nos ver ou nos falar.
Jorge Benjamin
A moeda circulou até meados de 1993, mas poucos sabem da sua história. A moeda homenageou uma família afro-brasileira, mas não revelou os nomes dos envolvidos —diferentemente do que ocorre com barões ou figuras históricas, como Tiradentes. Essa moeda do centenário não tem o nome de ninguém.
É uma moeda que simboliza a libertação de um povo. Fala de uma luta, da história, mas não somos reconhecidos, a história não é reconhecida.
Jorge Benjamim
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Quero receberBenjamim trabalhou 35 anos na Casa da Moeda e hoje quer que a história seja celebrada. "Já encontrei muitas autoridades no Rio que não sabem dessa história ou quem são essas pessoas. Nosso objetivo é fazer um registro para que se torne uma história de patrimônio cultural. O projeto Moeda Viva é para levar o conhecimento, mostrar que as pessoas que estampam essa moeda ainda estão vivas e com história para contar. Sou uma pessoa simples e negra e estar em uma moeda que circulou pelo país é uma história que deve ser reconhecida."
'É necessário reconhecer a cultura brasileira'
A especialista em numismática (estudo de moedas) Gisele Silva de Jesus, 35, ao conhecer a história de Benjamim se empenhou em também contá-la. "Coleciono e comercializo moedas desde 2016 e o conheci em 2019. Verifiquei toda a história e vi que era verdade. Falei para ele juntar as provas para que pudéssemos contar essa história, porque tínhamos de fazer algo especial, já que é uma história cultural rica com pessoas em moedas que ainda estão vivas."
Ao lado de Benjamim, ela construiu o projeto Moeda Viva. "Iniciei de forma simples, o levando aos eventos de colecionismo. Tirei dinheiro do meu bolso para o Benjamim poder viajar e estar comigo e fazer mais pessoas conhecê-lo. Até então, esse projeto não tinha nome, mas, conversando com um amigo que é designer, ele nos ajudou a criar o Moeda Viva. Desenvolvemos juntos produtos para vender e todo o valor podemos reverter para divulgar a história."
Para ela, trazer o caso de Benjamim à tona é uma forma de recuperar a própria história brasileira. "É de grande importância esse reconhecimento. O nosso país foi construído por meio da cultura afro e, em um momento importante dessa história [o centenário da abolição da escravidão], essa história é novamente contada pela metade."
Meu principal objetivo é trazer ao conhecimento do público o Benjamim, um brasileiro que está vivo e tem seu rosto estampado em uma moeda que circulou em nosso país. (...) Assim como tantos outros artistas negros que nos representam em diversas áreas, o Benjamim está aqui representando o povo brasileiro.
Gisele Silva de Jesus, especialista em numismática
O UOL procurou a Casa da Moeda para saber se existia uma razão para que o projeto tenha sido mantido em sigilo e se houve algum motivo específico para os nomes dos modelos não estarem nas moedas. O espaço será atualizado assim que houver manifestação.
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