Conteúdo publicado há 22 dias

Receitas controladas e atestados a R$ 50 são vendidos sem restrições em app

Receitas para a compra de remédios controlados e atestados médicos estão sendo anunciados no Telegram de forma indiscriminada.

O que aconteceu

Receitas para medicamentos psiquiátricos e atestados médicos são anunciados com valores entre R$ 30 e R$ 100 no aplicativo. Ofertando dezenas de receitas para remédios, criminosos se escondem por trás de perfis falsos e contam com o "feedback" da clientela para conquistar mais vendas.

Atestados médicos são oferecidos a R$ 50. Até segunda-feira (19), o UOL apurou que o grupo acumulava mais de 2.500 membros.

A reportagem simulou a compra de um xarope de codeína por R$ 50. Esse medicamento é restrito, causa dependência e atua no sistema nervoso central, aliviando dores e servindo para casos de tosse. No entanto, há quem use de forma recreativa.

O psicoativo provoca sensação de relaxamento. Geralmente de cor roxa, ele costuma ser usado com refrigerante e com outras substâncias, em uma mistura chamada de "lean".

É igual fumar uns trinta becks (cigarros de maconha). Você fica lento, calmo, com sono. É tipo a morfina do dentista, mas que afeta o corpo todo.
Usuário de 'lean', que prefere não se identificar

A pessoa vê que está com ansiedade e quer tomar um tarja preta, mas não quer ir ao psiquiatra. Às vezes não tem acesso, dinheiro, tem vergonha. Encontra no ilegal essa saída. Além disso, entra em um problema de drogas no geral. Um grupo de perfil jovem quer buscar novas emoções e se atrai pelo 'barato'.
Alexandre Loch, doutor em psiquiatria e professor da USP (Universidade de São Paulo)

Receitas para remédios controlados são anunciados em aplicativo
Receitas para remédios controlados são anunciados em aplicativo Imagem: Reprodução/Telegram

'Não fica nervoso'

A reportagem entrou em um grupo no Telegram, e um perfil de administrador questionou qual era a receita desejada. Ele também explicou a "onda" do remédio de interesse.

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A pessoa explicou como funciona para comprar um medicamento com a receita falsa. Ele conta que, basicamente, emite uma receita digital em formato de PDF com carimbo válido de uma "médica cadastrada", com validade de seis meses. O perfil ainda diz que envia a receita e auxilia na obtenção do produto, como detalhes de preenchimento e ida até a farmácia.

Os feedbacks indicam sucesso na compra e facilidade para a obtenção. Dezenas de clientes mandam fotos das caixas dos medicamentos e agradecem no grupo com mais de 2.000 membros. Quem conseguiu comprar sugere maneiras menos arriscadas de conseguir os ativos. "Tem que ir numa farmácia de bairro, pequena. Não fica nervoso que vai dar tudo certo", garante um dos usuários.

Receitas falsificadas são anunciadas em aplicativos
Receitas falsificadas são anunciadas em aplicativos Imagem: Reprodução/Telegram

Exemplos de insucessos são omitidos. As pessoas costumam indicar a "fonte" das receitas, mas não se vê quem diga que deu errado — sugerindo uma possível manipulação dos administradores do fórum. O UOL tenta contato com o Telegram e caso haja manifestação, o texto será atualizado.

Casos isolados já são investigados pela polícia. O delegado Eduardo Pedrini, de Capinzal (SC), comentou sobre o caso de um homem preso em junho deste ano após ser descoberto em um esquema de venda ilegal de receitas e atestados em aplicativos de mensagens.

As investigações mostraram que o suspeito oferecia as receitas dos remédios controlados nas redes sociais e por lá mesmo negociava valores. Este, além de dar a opção da receita por PDF, também oferecia a possibilidade de encaminhar uma receita física em uma espécie de "delivery".

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Há uso de softwares de edição para a manipulação dos documentos. Ela (receita) é criada do zero, mas também há modelos na internet disponíveis, então não fica muito difícil o trabalho. Nas receitas físicas, já não há tanta sofisticação, mas há quem aceite.
Eduardo Pedrini, delegado

Outras requisitadas receitas azuis (psicotrópicos que atuam no sistema nervoso central) e amarelas (para medicamentos mais fortes e com maior potencial de dependência), são oferecidas nos fóruns. Receitas de Rivotril, Ritalina, Venvanse, Oxidocona, Zolpidem e até anabolizantes são ofertadas.

Receitas ilegais são anunciadas em grupo
Receitas ilegais são anunciadas em grupo Imagem: Reprodução/Telegram

Há risco de dependência e de uma série de distúrbios, explica especialista. Alexandre Loch, doutor em Psiquiatra e professor da USP, afirma que já tomou conhecimento da venda ilegal de prescrições na internet e explica que isso se fortalece pelo desejo das pessoas de se automedicarem, algo extremamente perigoso, em sua avaliação.

Primeiro um risco mental, um risco de a pessoa desenvolver outros distúrbios. Recebo pessoas que tomam, e não era para tomar. [As pessoas] Chegam em um quadro de ansiedade muito grande. A pessoa abusa do diazepínico e tem quadro de dependência, ou toma um monte de benzodiazepínicos e entra em abstinência e tem convulsão.

A pessoa não tem TDAH, mas procura Ritalina para melhorar o desempenho e aumentar o foco. Há danos físicos também. A pessoa pode se intoxicar, porque não era para tomar aquele remédio, abusa e sofre um acidente de carro ou tem uma convulsão.
Alexandre Loch, doutor em psiquiatria

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O psiquiatra teme que isso se torne um problema de saúde pública, levando em consideração que quem entra em dependência passa a procurar vários médicos em busca do remédio. Quando se frustra por esses meios, vai em busca de métodos ilegais. "A pessoa usa dez Diazepam's por dia, a gente pega, reduz e controla as receitas. A pessoa que é dependente visita vários médicos e vai pedindo uma receita para cada médico", destaca.

Receitas ilegais são anunciadas online
Receitas ilegais são anunciadas online Imagem: Reprodução/Telegram

Prática é ilegal

Falsidade ideológica e uso de documento falso: quem pratica o comércio ilegal de receitas e atestados médicos pode ser responsabilizado criminalmente.

Regulação e monitoramento das receitas passam por três pilares. De acordo como neurologista Hideraldo Cabeça, conselheiro do CFM (Conselho Federal de Medicina), deve haver uma atenção ao problema por parte dos médicos, da Anvisa e dos farmacêuticos.

Cada um tem sua parcela de responsabilidade. O médico de prescrever em uma plataforma adequada, com certificado digital. Na outra ponta, o farmacêutico, que precisa checar se essa assinatura é de um médico, com o convênio entre ambas. A fraude é uma fragilidade.
Hideraldo Cabeça, conselheiro do CFM

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O problema pode ser sanado com tecnologia, diz conselheiro. Existe um sistema para geração e validação de receitas online que apenas pessoas autorizadas, como médicos e farmacêuticos, têm acesso. Nesse sistema, desenvolvido pelo CFM em parceria com o ITI (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação), o médico tem uma assinatura por meio de certificado digital.

Cabeça explica que é muito difícil fraudar atestados ou receitas nesse sistema. Contudo, ele acredita que ainda não há adesão total da plataforma no Brasil, abrindo lacunas para falsificações e fragilidades nas farmácias.

O representante do CFM e o psiquiatra consultado pela reportagem explicam que muitos profissionais não acessam a ferramenta. Nos casos que o UOL teve acesso, não houve a confirmação sobre a validade das assinaturas utilizadas ou da falha na inspeção.

A nossa plataforma alcança esse rigor, mas na outra ponta deve se verificar se a dispensação está correta, que cabe ao farmacêutico. O médico prescreve, dá ao paciente, cabe ao farmacêutico verificar se aquela prescrição no formato eletrônico ou em papel. No eletrônico ele vai até o ITI, que faz a validação de receitas eletrônicas e diz se está dentro do parâmetro adequado, que valida as receitas. Se não está validada, não deve ser liberada.
Hideraldo Cabeça, conselheiro do CFM

Farmacêutico é obrigado e consultar a plataforma de prescrição digital, diz CFF (Conselho Federal de Farmácia). Fátima Aragão, coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Farmácia Comunitária do CFF, explica que não é simples o aceite de uma receita em formato de PDF em estabelecimentos.

Quando uma farmácia recebe uma prescrição digital em PDF, é obrigatório que o farmacêutico, antes de entregar o medicamento, faça o upload da receita na plataforma de validação de documentos de saúde, disponível no portal do ITI. Esse procedimento é necessário para verificar se a assinatura é válida e se pertence a um prescritor com registro ativo no conselho profissional. A prescrição só pode ser aceita se validada no portal do ITI, o que elimina a possibilidade de falsificação, exceto se o falsificador tiver acesso à assinatura digital do prescritor.
Fátima Aragão, conselheira do CFF

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Uma das orientações dentro do grupo do Telegram é priorizar a ida em farmácias pequenas, chamadas de "farmácias de bairro". De acordo com o CFF, mesmo que haja uma força-tarefa para apurar fraudes, o Brasil conta com mais de 91 mil estabelecimentos do tipo, inviabilizando um monitoramento total.

Farmácia que aceita receita irregular colabora com a fraude, diz conselho. Apesar de não saber informar a existência e a quantidade de falsificações, o CFF explica que "a farmácia que aceita receitas não validadas comete uma infração e colabora com a fraude, dado que há meios eficazes de verificar a autenticidade da assinatura digital".

O órgão conclui que se o farmacêutico identificar irregularidades, a Polícia Federal deve ser acionada. Os conselhos regionais e os órgãos de Vigilância Sanitária também devem ser avisados, informa o CFF.

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