Luminárias derrubadas: por que a Liberdade é importante para memória negra?

Luminárias japonesas (lanternas suzuranto), que estão no bairro desde 1980, foram retiradas nesta terça-feira (19) em uma rua da Liberdade, zona central de São Paulo. A medida é resultado de um trabalho pela recuperação da diversidade étnica característica do bairro.

A retirada das lanternas é um marco fundamental para a revalorização do que a gente chama do complexo dos aflitos -- o beco, o futuro memorial e a Capela. É um passo importantíssimo para ancestralidade negra e indígena de São Paulo, para a narrativa dos excluídos da cidade que foi apagada durante anos.
Wesley Vieira, pesquisador e membro da UNAMCA

O que aconteceu

Luminárias japonesas foram removidas da Rua dos Aflitos, na Liberdade. No local está localizada a Capela dos Aflitos, que abriga o primeiro cemitério público da cidade, inaugurado em 1774. No ano passado, após pressão popular, foi definido que o complexo ganhará um memorial histórico.

Isso valoriza a diversidade, integração e convivência dos diferentes povos. Sem [a retirada], teríamos uma narrativa única de bairro asiático, japonês [em 2018 o metrô alterou o nome da estação do bairro para Japão-Liberdade], o que é contra a verdade histórica dos fatos.
Wesley Vieira, pesquisador e membro da UNAMCA

A retirada faz parte de um programa para recuperar a história do bairro. A demanda pela remoção das luminárias é antiga. Segundo Wesley VIeira, pesquisador da USP e membro da UNAMCA (União dos amigos da Capela dos Aflitos), o próprio relatório de tombamento da capela, que ocorreu em 1978, afirma que elas descaracterizavam o espaço tombado.

A orientalização do bairro da Liberdade, com a colocada dessas luminárias e o calçamento, aconteceu em 1974. A Capela foi tombada em 1978. O relatório [de tombamento] já aponta que é preciso adequar o espaço tombado, inclusive no aspecto da iluminação pública. Isso há 50 anos. E com os achados arqueológicos de 2018 formou-se a UNAMCA e nós fizemos esse pedido.
Wesley Vieira, pesquisador e membro da UNAMCA

Mudança faz parte do projeto Ruas Abertas. A ideia é transformar a Rua dos Aflitos em um espaço de resgate da memória. Além da retirada das luminárias japonesas, a proposta é que o local fique aberto apenas aos pedestres e traga itens que fazem alusão à história dos Aflitos, como paralelepípedos e luminárias característicos do século 19 e condizente com a história da Capela dos Aflitos, segundo Vieira. Em nota, a Prefeitura confirmou que a substituição foi uma "medida tomada em resposta ao pedido de entidades ligadas ao movimento negro". A Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento e a São Paulo Urbanismo disseram que as obras "para qualificar vias do bairro estão em fase de licitação".

O objetivo é que as pessoas ao chegarem no beco dos aflitos sejam surpreendidas e afetadas por um novo cenário e se perguntem: por que aqui é diferente? E o próprio cenário dá as respostas. As pessoas poderão entrar em contato com outra narrativa de São Paulo -- de povos negros e indígenas.
Wesley Vieira, pesquisador e membro da UNAMCA

Em compromisso com a transparência e o diálogo com a sociedade, as lanternas, que remetem à imigração japonesa, foram consideradas inadequadas para o local, uma vez que o Beco dos Aflitos abriga a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, um marco da época da escravidão no Brasil. A mudança foi feita antes do Dia da Consciência Negra, mas as lanternas Suzuranto foram mantidas no restante do bairro, preservando a herança da imigração japonesa. A decisão buscou equilibrar o respeito às diferentes camadas culturais presentes no bairro, garantindo que a memória de cada grupo seja adequadamente representada.
Nota da Prefeitura

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O bairro da Liberdade

Capela dos Aflitos abriga o primeiro cemitério público da cidade, inaugurado em 1774
Capela dos Aflitos abriga o primeiro cemitério público da cidade, inaugurado em 1774 Imagem: Eduardo Anizelli/ Folhapress

Bairro foi considerado uma das primeiras periferias urbanas e onde nasceu a primeira escola de samba de São Paulo. A Liberdade transformou-se em lar para os primeiros negros libertos e alguns escravizados ainda no século 18 e 19. Em 1937, a Lavapés, primeira escola de samba da cidade, foi criada no bairro da Liberdade. Deolinda Madre, conhecida por Madre Eunice, foi quem fundou o grupo e hoje ela é homenageada com uma estátua no local.

Também foi onde São Paulo abrigou primeiro cemitério público. Em 2018 foram encontrados nove ossadas humanas em um terreno ao lado da capela. Acredita-se que no local existam restos mortais de muitas pessoas negras e indígenas, cujas histórias foram apagadas ao longo dos anos.

É onde os restos mortais de Chaguinhas podem estar. A história do militar deu origem ao nome do bairro e a um rito espiritual na Capela dos Aflitos. Cabo do Primeiro Batalhão de Santos, Chaguinhas foi sentenciado à morte em 1821, após participar de uma revolta que reivindicava soldos atrasados (remuneração militar) e igualdade de valores no pagamento para os militares brasileiros e portugueses. Ele foi condenado à forca no que é hoje o Largo da Liberdade, mas ele sobrevive após três tentativas. Ao longo dos anos, rezadeiras cultuaram imagem e o nome dele na Capela dos Aflitos, um rito reconhecido em julho deste ano como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado de São Paulo.

A história de Chaguinhas ajuda a recuperar a identidade negra do bairro da Liberdade
A história de Chaguinhas ajuda a recuperar a identidade negra do bairro da Liberdade Imagem: Arquivo pessoal