Moradores da Rocinha relatam abusos, invasões e furtos em operação policial
Cerca de 400 homens, entre policiais militares de 11 batalhões, policiais civis e membros do Ministério Público, subiram a Rocinha, na zona sul do Rio, na madrugada de terça-feira (17), com o objetivo de prender 34 traficantes de outros estados que estariam se escondendo na maior favela do Brasil.
Os agentes deixaram o local prendendo apenas um: Kaio Alves Ferreira, acusado de liderar o Comando Vermelho em Goiás. Outro procurado pela Justiça também foi detido.
Além disso, a operação apreendeu um fuzil de brinquedo, uma granada, algumas munições e drogas. Três pessoas foram baleadas. Uma delas morreu na hora.
A reportagem foi ao local na tarde de terça-feira. Moradores narraram uma execução contra um homem rendido, casas invadidas com portões arrombados e objetos furtados, além de comércios e paredes atingidos por disparos de armas de fogo. A população arrumava os estragos e varria as cápsulas deixadas no asfalto.
A operação teve início por volta das 4h. O objetivo era localizar membros do CV (Comando Vermelho) que fugiram de outros estados, principalmente do Ceará e de Goiás.
A reportagem apurou que eles se dividiram e foram para outras favelas da capital e da Baixada Fluminense dominadas pela mesma facção criminosa.
Ao todo, nove escolas foram fechadas, assim como algumas unidades de saúde. Os moradores tiveram de ficar dentro de suas próprias casas, o que impediu que muitos fossem trabalhar.
A reportagem questionou Polícia Militar, Polícia Civil, Secretaria de Segurança Pública e Ministério Público sobre as ações na Rocinha e os relatos dos moradores.
Em nota, a assessoria de imprensa da PM disse apenas que "criminosos armados atiraram contra as equipes policiais", e confirmou a prisão de dois homens, a apreensão de mais de 400 kg de maconha, 35 kg de cocaína, o simulacro de uma AK-47 e de munição.
A nota do MP confirmou a ação, ocorrida "em apoio à Polícia Civil do Estado do Ceará, e teve como alvos integrantes da organização criminosa Comando Vermelho do Ceará, que estariam escondidos na região. Foram apreendidos 40 tabletes de cocaína, dois revólveres e 50 munições de armas de fogo".
Morto durante a operação
Vitor dos Santos Lima, 24, morreu ao ser atingido por um tiro no queixo. A bala saiu pela nuca. A polícia divulgou que ele era segurança do chefe do CV na Rocinha, John Wallace da Silva Viana, conhecido como Johnny Bravo.
Um vídeo que circulou nas redes sociais mostra Lima gravando a si mesmo armado. O vídeo é de 2017.
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Quero receberLima foi preso em 2021 sob a acusação de ter torturado dois adolescentes na favela em 2017. Ele cumpriu pena por associação com o tráfico de drogas.
Quando deixou o sistema prisional, saiu da facção criminosa, segundo moradores da Rocinha e familiares, que afirmaram que, um dia antes de ser morto, ele pediu trabalho a alguns conhecidos.
Vizinhos e familiares disseram que Lima já trabalhava em um comércio criado pela mãe dele na Rocinha. Sua rotina era levar a mãe e a namorada para o trabalho de moto, trabalhar e, no fim do dia, buscá-las. Ele tinha um relacionamento de oito anos e estava se mudando de casa com a namorada.
Nathalia Amaral Teixeira, a namorada de Lima, afirma que as testemunhas da morte afirmam que houve "covardia", porque o rapaz estava desarmado e não reagiu. Nenhuma arma foi apreendida com Lima ou ao lado de Lima. A PM afirmou que ele foi localizado já sem vida e que a Delegacia de Homicídios foi acionada.
"Falaram que ele faz e que acontece, mas o Vitor tinha uma vida normal. A gente vivia uma vida normal. A gente andava na rua como pessoas normais. Não tinha mandado de prisão pro Vitor. E agora estão falando mil coisas que o Vitor é, que fazia, que acontecia, pra disfarçar o fracasso de uma operação", diz Nathalia.
A intenção era sair daqui e falar assim: 'matei alguém'. Era, simplesmente, falar assim: 'foi uma operação que teve sucesso porque eu matei alguém'.
Nathalia Teixeira, namorada de Vitor Lima
PMs sem câmeras corporais
Um vídeo gravado pelo advogado Alberico Montenegro, que atua na Rocinha, flagrou PMs do Bope (Batalhão de Operações Especiais) na favela sem câmeras corporais, o que contraria as diretrizes estabelecidas pela APDF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635, conhecida como APDF das Favelas, em vigor desde 2019 por determinação do STF (Supremo Tribunal Federal).
Durante a gravação, é possível ouvir que um policial confirma a atuação na operação sem o equipamento. "Tem policiais sem câmera. Quem responde isso? Sabe quem é? É o comandante do batalhão", disse o PM.
Em outra gravação feita pelo mesmo advogado, outro policial do Bope pediu para que ele parasse de gravar sob ameaça de levá-lo para a delegacia.
Em entrevista ao UOL, o advogado afirmou que, nas ruas que margeiam a favela, policiais estavam com as câmeras corporais na farda.
"Entretanto, no beco, onde efetivamente ocorreu o confronto com o Vitor, que foi vítima fatal, eles não tinham a câmera corporal. Não adianta apresentar uma ocorrência policial e dizer: 'ah, tinha policial com câmera corporal'. Eram 400 policiais. Só 50 tinham câmera", disse.
Casas invadidas
A reportagem circulou por vielas da região da Dionéia, no miolo da Rocinha, onde Lima foi morto. Moradores afirmaram que tiveram suas casas invadidas por policiais, sem mandados, e tiveram itens furtados. "Um deles chegou a dizer, enquanto ia embora: 'obrigado, Rocinha, por fazer meu Natal mais feliz'", afirmou uma moradora.
Em outra casa, outra moradora disse que, no começo da manhã, policiais cortaram a fiação da energia elétrica, invadiram sua casa e reviraram tudo.
"Roubaram a caixa de música que eu tinha comprado não tinha nem um mês direito. A gente comprou as roupas do Natal, nem as roupas eu tô vendo", relatou.
Na mesma viela, um morador de outra casa disse que viu de sua laje uma vizinha ir à padaria. No meio-tempo, observou PMs arrombando o portão.
Quando a vizinha voltou, ele avisou o que tinha acontecido. Ela entrou na casa e, em instantes, saiu mostrando para ele uma cápsula de uma arma de grosso calibre, dizendo: "deixaram em cima da minha cama".
"Eles bagunçaram tudo. Pô, vê que tem brinquedo, roupa de criança e vai bagunçar a casa dos outros? Se eles chegarem, entrarem, acharem droga, arma, alguma coisa, beleza. Mas, pô, entrar na casa de um montão de família, quebrando porta, roubando as coisas?", questionou outro vizinho.
'Ninguém é contra operação policial'
William de Oliveira é ativista social, formado em perícia criminal e diretor da Federação de Favelas. Ele afirmou que iria relatar à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Ministério Público e órgãos judiciais os abusos que moradores da Rocinha relataram durante a operação policial.
"O êxito da operação é quando ela não tem nenhum morador chorando, nenhum morador reclamando, e quando eles [policiais] conseguem cumprir o objetivo. Aqui ninguém está contra a polícia. A gente está discutindo a questão do excesso", afirmou.
Segundo levantamento do Geni-UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense), das 22.198 operações policiais realizadas no Rio entre 2007 e agosto de 2024, apenas 316 (1,4%) se mostraram totalmente eficientes.
"Porque na favela é sempre assim. Sempre um confronto, sempre uma situação de violência. A gente não quer mais essas operações, a gente quer uma operação de inteligência, em que eles entram, façam o trabalho deles, prendam quem tem que prender, e o morador, que não tem nada a ver com a história, não pague o preço", disse Oliveira.
Paulo Henrique Lima, procurador-geral da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, também esteve na Rocinha na tarde de terça-feira.
"O que aconteceu aqui é muito triste. A gente viu um cenário de guerra. Infelizmente, os relatos são muito graves, com várias violações de direitos humanos", afirmou.
O procurador-geral disse que iria enviar um ofício à PM, MP e Secretaria de Segurança. Além disso, afirmou que faria um relatório sobre o que ouviu dos moradores da favela para enviar ao ministro Edson Fachin, do STF.
É importante que as forças de segurança respeitem a legalidade. Os moradores da Rocinha e de todas as favelas do Rio merecem ter seus direitos humanos respeitados e preservados.
Paulo Henrique Lima, da OAB-RJ
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