O café proibido: por que algumas religiões dizem não à cafeína?

Seja por razões de saúde, disciplina espiritual ou obediência a ensinamentos sagrados, fiéis de determinadas religiões renunciam à xícara de café como parte de sua fé. Mas por que algumas tradições proíbem o café? E como os adeptos lidam com essa restrição em uma cultura onde a bebida é quase onipresente?

A resposta para essas perguntas passa por doutrinas específicas de grupos religiosos como os Adventistas do Sétimo Dia e os fiéis da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons), que ensinam que o café deve ser evitado por razões espirituais e de saúde.

No caso dos adventistas, essa prática está ligada à chamada Reforma da Saúde, um conjunto de princípios que incentivam uma alimentação equilibrada e a rejeição de substâncias estimulantes, como a cafeína. Para os mórmons, a orientação vem da Palavra de Sabedoria, uma revelação dada ao fundador da religião, Joseph Smith, que instrui os fiéis a evitarem "bebidas quentes", tradicionalmente interpretadas como café e chá preto.

Café e dependência: a perspectiva adventista sobre a saúde e a fé

Para André Bezerra, que é adventista há 15 anos, deixar o café não foi apenas uma decisão religiosa, mas também uma constatação pessoal sobre os efeitos da cafeína. "Bebia café e, por mais que pensasse que não, eu era viciado, pois bastou eu tentar parar de tomar e senti dor de cabeça por quase duas semanas direto."

A recomendação da Igreja Adventista do Sétimo Dia para evitar a cafeína está fundamentada tanto em princípios bíblicos quanto em orientações de saúde. Segundo Bezerra, "a própria Bíblia recomenda o não uso de substâncias que levem à dependência, como álcool e drogas, e no café possui uma droga chamada cafeína que causa dependência, e isso é comprovado pela própria ciência".

O pensamento adventista sobre o café foi fortemente influenciado pelos escritos de Ellen G. White, fundadora da denominação, que no livro "Ciência do Bom Viver" descreve os efeitos nocivos da bebida. Segundo a autora, "chá e café não nutrem o organismo. Seu efeito produz-se antes de haver tempo para ser digerido ou assimilado, e o que parece força não passa de excitação nervosa". Para os adventistas, a relação entre espiritualidade e saúde é um princípio fundamental, com base na ideia de que o corpo deve ser tratado como um "templo do Espírito Santo", conforme acreditam ensinar a Bíblia (1 Coríntios 6.19).

Embora tenha voltado a consumir café em determinado momento, Bezerra abandonou a bebida definitivamente após um problema de saúde.

Em 2019, tive um problema cardíaco e parei de vez, vendo que a própria cardiologista recomendou. Na ocasião, me foquei nas recomendações de saúde que a igreja prega e, graças a Deus, eu, que deveria fazer uma cirurgia de peito aberto, não precisei.
André Bezerra, adventista

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Apesar da orientação contrária ao consumo da cafeína, ele enfatiza que a igreja não impõe essa restrição de forma obrigatória. "Nenhum membro será hostilizado por tomar café. Deus quer que tenhamos saúde, por isso a própria Bíblia faz recomendações de saúde", finaliza.

A Palavra de Sabedoria e a proibição do café na tradição mórmon

A restrição ao consumo de café entre os membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias é uma norma rigorosa fundamentada na chamada "Palavra de Sabedoria", uma revelação atribuída ao fundador da religião, Joseph Smith, no século 19.

Segundo o ex-membro Rogério Santos, que integrou a igreja por mais de 20 anos e chegou a exercer o cargo de bispo, a proibição surgiu inicialmente como uma recomendação, mas com o tempo tornou-se um critério determinante para a participação ativa na comunidade religiosa.

Durante um bom tempo, essa Palavra de Sabedoria foi vista apenas como uma recomendação. E, cem anos depois, de fato, as pessoas passaram a tratá-la como fundamental, inclusive para receber cargos na igreja.
Rogério Santos, ex-mórmons

A interpretação oficial da igreja considera "bebidas quentes" como referência direta ao chá preto e ao café, porque ambos derivam, segundo a interpretação da igreja, da planta Camellia Sinensis. No entanto, Rogério aponta que, enquanto a ingestão de café é terminantemente proibida, outros produtos que contêm cafeína, como refrigerantes, são aceitos informalmente.

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"Tem uma particularidade interessante. Os mais antigos não tomavam nem Coca-Cola, porém, hoje em dia as pessoas bebem normalmente. Mas se você for, por exemplo, num churrasco de um membro da igreja, terá Coca-Cola, mas nunca numa atividade da igreja", relata. Esse tipo de contradição, segundo ele, reforça o caráter legalista da norma.

Ao deixar a igreja, Rogério conta que a primeira mudança em sua rotina foi justamente a reaproximação de hábitos antes proibidos. "Eu não me senti obrigado a obedecer e não me senti culpado por tomar uma taça de vinho ou mesmo um café. Aliás, hoje eu até tenho assinatura de café, eu gosto muito de café", revela.

Para ele, a proibição não tem base bíblica e funciona mais como uma forma de controle interno do que como um princípio espiritual. "O café tem base [apenas] dentro das escrituras da Igreja Mórmon". Além da Bíblia cristã, os mórmons fazem uso de outros textos que também consideram sagrados.

Uma visão teológica questionável

A teóloga Norma Braga, mestre em teologia, questiona a base teológica dessas proibições e argumenta que elas se distanciam da perspectiva bíblica sobre moderação e liberdade cristã. Segundo ela, a Bíblia não proíbe nenhum alimento ou bebida, mas recomenda equilíbrio.

"A verdade é que os efeitos do café, se consumido moderadamente, podem até ser benéficos para a saúde do coração e a prevenção de doenças degenerativas. Dito isto, a Bíblia não proíbe alimento nem bebida alguma, mas recomenda a moderação."

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Para a teóloga, o perigo maior não está no café em si, mas no legalismo que transforma hábitos pessoais em critérios de fé. "Entre quatro xícaras de café por dia e o orgulho espiritual, é melhor o religioso optar pelo café", conclui.

Café: vilão ou aliado da saúde?

A visão de que o café faz mal à saúde, defendida por adventistas e mórmons, não encontra respaldo unânime na ciência. De acordo com a nutricionista Aline Patrícia, quando consumido dentro das recomendações, o café pode até trazer benefícios.

"O consumo de café é seguro para a maioria das pessoas quando dentro das recomendações de até 400 mg de cafeína por dia, o equivalente a cerca de 3 a 4 xícaras", explica.

De acordo com a nutricionista, estudos indicam que a substância melhora o estado de alerta e a função cognitiva, além de estar associada à redução do risco de doenças como Alzheimer e Parkinson.

No entanto, a especialista ressalta que as escolhas alimentares vão além dos aspectos nutricionais, envolvendo também fatores culturais, religiosos e individuais. "Cada pessoa deve considerar sua saúde, estilo de vida e crenças ao decidir consumir ou evitar determinados alimentos, respeitando sempre suas motivações pessoais", afirma.

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