Eldorado do Carajás deixou sequela, diz ferido no massacre nunca indenizado
O trabalhador rural José Carlos Agarito Moreira, 41, enxerga apenas vultos. Desde os 16, suporta, como pode, uma bala alojada entre seu olho direito e o crânio, o que lhe roubou a visão de um lado.
Passados 25 anos do massacre de Eldorado do Carajás, no Pará, o sobrevivente começa a perder a visão do olho esquerdo. Não tem coragem de ir ao hospital com medo de se infectar com covid-19.
Rapaz, é complicado, viu. Só recordação de tristeza.
José Carlos Agarito Moreira, sobrevivente de massacre em Eldorado do Carajás
Com a voz embargada, fala com pesar sobre não poder trabalhar, das dores que sente todos os dias, de como a bala afetou também a sua audição.
Diz acreditar, que com acompanhamento adequado ao longo dos anos, poderia estar melhor. Queria voltar a enxergar e, como ele, há muitos outros. O massacre, para os sobreviventes, nunca acabou.
Agarito, que vive com ajuda dos parentes, é vice-presidente da associação criada para lutar pelos direitos das vítimas e dos familiares dos mortos.
Recentemente, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional, a associação levantou uma lista de 25 sobreviventes que nunca receberam qualquer forma de reparação pelo acontecido naquele dia 17 de abril de 1996, quando, durante uma marcha, cerca de 2.000 manifestantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foram atacados pela Polícia Militar. O saldo foi de 19 mortos e 69 feridos.
A associação também denuncia que mesmo os mutilados que foram indenizados estão sofrendo com a completa falta de assistência médica do Estado.
"O atendimento médico nunca foi consistente. São pessoas que até hoje carregam balas no corpo. Sempre escutaram promessas [de assistência médica], que nunca foram cumpridas", relata o advogado Walmir Brelaz, que representa as vítimas na Justiça desde 1998.
A distribuição das reparações foi irregular: existem atingidos e viúvas que receberam indenizações e que hoje recebem pensões, em torno de um salário mínimo (R$ 1.100 nos valores atuais). Alguns só obtiveram indenizações.
E outros nunca conseguiram ter acesso a esse direito que, segundo Brelaz, consta do acordo de 2007: qualquer pessoa ferida naquele dia tem direito à reparação.
A Repórter Brasil conversou com dois sobreviventes, da lista de 25, que nunca foram indenizados. Maurílio da Silva Soares, 51, fraturou o braço e levou um "balaço" na perna. Afirma ter medo até hoje de ir a lugares públicos. "É a pior parte. Até hoje eu vejo polícia e fico estranho", relata. Ele vive como agricultor em Parauapebas (PA), de onde saiu um dos batalhões que agiu no dia do massacre.
Já Lindomar de Jesus Cunha, o Mazinho, 44, foi baleado no joelho e ainda sofre com dores.
O massacre deixou sequela tanto na parte humana das pessoas como na física. Mas também feriu os movimentos sociais e a política pública do Estado, que até hoje é um lugar de conflitos e de latifúndios.
Lindomar de Jesus Cunha, sobrevivente do massacre em Eldorado do Carajás
Ambos dividem uma história em comum: após o massacre, fugiram. O medo se justifica: ao menos dez pessoas, segundo os laudos oficiais, foram executadas. A maior parte delas eram lideranças do movimento, como os dois.
A fuga torna difícil comprovar a relação direta entre os problemas de saúde e o massacre, explica Brelaz.
A lista com os nomes dos mutilados que ainda não foram indenizados foi anexada à denúncia que tramita na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA).
A petição foi protocolada em 1996 e, em 2003, uma reportagem da Folha dava como certa a condenação. Passados 17 anos, ainda é uma expectativa.
"Esperamos uma decisão nos próximos meses, porque o processo está avançado e a comissão tem todos elementos para decidir", analisa Beatriz Galli, do Centro pela Justiça e o Direito Internacional, uma das organizações que assinou a ação.
'Lembro todo dia do massacre'
Os cerca de 50 que foram indenizados confirmam que, apesar de ajudarem na recuperação, os valores foram muito baixos.
"O Judiciário fixa a indenização de acordo com a renda e, como eram agricultores, acabaram recebendo valores baixos se comparado com outras profissões", afirma Diego Vedovatto, advogado e membro do coletivo de Direitos Humanos do MST.
Foram vários os processos na Justiça. Em um deles, 20 mutilados pediram indenização, pensão do Estado e atendimento médico. O ganho de causa veio em 1999. Mas o Estado recorreu.
Somente em 2008, durante o governo de Ana Júlia (PT), as indenizações foram pagas a 50 sobreviventes, com valores entre R$ 20 mil e R$ 90 mil. Cinco anos antes, porém, a 14ª Vara Cível de Belém havia definido valores entre R$ 50 mil e R$ 300 mil.
"O fato emblemático dessa história é que ela não acabou. O Estado segue agindo de forma ilegal ao não cumprir o que estabelece a decisão judicial, causando sofrimento evitável após 25 anos", afirma Brelaz.
"Nós ficamos com medo de que o Estado lavasse as mãos após a indenização e foi o que aconteceu", concorda a dirigente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) Ayala Dias.
Em Cotijuba, uma ilha próxima a Belém, Rubenita da Silva, 56, diz que ainda vive o massacre "como se fosse hoje". Ela foi atingida por uma bala --ainda alojada em seu maxilar.
Foram cinco anos de operações para restaurar minimamente sua capacidade de falar e de comer. Mas ainda sente dores e nunca recuperou completamente a dentição. Hoje, ela se sustenta como guia turística e com a pensão de um salário mínimo
A gente vai sobrevivendo como dá. Eu lembro todo dia, né? Porque dói. Porque a fala ainda é dolorida de sair. Quem cuidou de mim foi o MST mesmo.
Rubenita da Silva, sobrevivente de massacre em Eldorado do Carajás
Após a publicação da reportagem, o governo do Pará informou que a "Procuradoria-Geral do Estadoinforma que desconhece formalmente a existência de 25 vítimas não reparadas do massacre de Eldorado do Carajás. No entanto, ressalta que, por meio de um acordo extrajudicial, firmado pelo Governo do Estado, em 2011, o pagamento de indenização e de pensão aos atingidos podem ser reclamados a qualquer tempo, sem o risco de prescrição do direito, desde que sejam demonstrados dano e nexo causal com a ação policial".
A Secretaria de Saúde e a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado não se manifestaram. A Repórter Brasil também entrou em contato com a CIDH da OEA para saber do andamento do processo e não obteve resposta.
Impunidade e mortes pela covid
A via-crúcis dos sobreviventes por hospitais, gabinetes, protestos e processos judiciais tem paralelo na condenação dos responsáveis: a lentidão, a negligência e as pendências nunca resolvidas.
Apenas 14 anos depois do massacre, duas pessoas foram condenadas: o coronel da PM Mário Colares Pantoja e o major José Maria de Oliveira, comandantes da operação.
No entanto, o então governador do Estado, Almir Gabriel, e o secretário de Segurança Pública do Pará, Paulo Sette Câmara, nem sequer foram indiciados, apesar de terem dado a ordem de "liberar a via [onde estavam os sem-terra] a qualquer custo". A investigação contra eles foi arquivada em 1997.
Dos quatro, dois morreram recentemente por complicações relacionadas à covid-19: Câmara, em maio, e Pantoja, que ficou quatro anos em regime fechado antes de ir para prisão domiciliar, em novembro de 2020.
Os fazendeiros da região, que se reuniram com o governador dias antes para pedir o fim da marcha e que foram acusados por uma testemunha de terem feito uma vaquinha para financiar o ataque da PM, foram investigados. Por fim, 153 policiais militares que participaram do massacre foram absolvidos.
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