Em meio a eleições e pandemia, o esforço para dar mais espaços (seguros) às crianças nas cidades brasileiras
O Jardim Ângela, no extremo sul de São Paulo, é um bairro conhecido por índices historicamente altos de violência. No entanto, quando 300 crianças e adolescentes de uma escola local foram perguntadas, em 2015, sobre qual era o seu maior medo cotidiano, a resposta mais comum não foi a violência armada — foi o medo de atropelamentos.
As crianças da EE Oscar Pereira Machado entrevistadas na época pela arquiteta Irene Quitáns preferiam esperar pelo ônibus ou usar outros meios de transporte, mesmo morando perto da escola, porque temiam atravessar a Estrada de M'Boi Mirim e as ruas próximas.
O medo não era à toa: a avenida costuma figurar entre as vias com mais acidentes fatais da capital paulista.
Situações como essa se repetem em outras partes de São Paulo e de outras cidades de diferentes cantos no Brasil, onde a histórica prevalência do carro como meio de transporte preferencial moldou espaços urbanos nem sempre amigáveis para crianças ? e, por tabela, para outros grupos que têm dificuldade em se mover a pé e usar o espaço público, como idosos e deficientes físicos.
Em última instância, argumentam urbanistas, as cidades se tornam mais inóspitas para todos.
O tema, embora não costume despertar muita atenção nem mesmo em época de eleições municipais, ganha nova relevância por conta da pandemia, que aumentou a preocupação em como garantir espaços seguros ao ar livre, onde as chances de contaminação são menores do que em locais fechados.
Ruas adotadas
No ano passado, 12 ruas de seis bairros na região periférica de Parelheiros, também no extremo sul de São Paulo, foram ocupadas por pinturas no asfalto, jogos e atividades extras (como apresentações de teatro e campanhas de vacinação). Os mais velhos acompanhavam tudo sentados em cadeiras dobráveis colocadas nas ruas.
Nos dias de semana, as escolas de educação infantil passaram a usar as próprias ruas como espaço de ensino, levando as crianças pequenas para brincar na natureza e fazer atividade física.
O projeto, batizado de Ruas Adotadas, foi encampado pelas próprias mães de Parelheiros: a comunidade escolhia ruas para serem sinalizadas (de forma a limitar a circulação dos carros) e transformadas em espaços de convivência.
"A ideia é de que a rua é perigosa, mas não, a rua é da comunidade", diz à BBC News Brasil Vera Lion, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), que abriga o projeto encampado pelas Mães Mobilizadoras de Parelheiros.
"Fez uma superdiferença na comunidade. Teve muito essa coisa de recuperar (o espírito de) criança nos adultos. Nas nossas reuniões de agora, muitos falam, 'que saudades da rua adotada'."
O projeto pretendia adotar mais ruas em 2020, mas foi suspenso por causa da pandemia. Ainda não há previsão para a retomada, embora haja expectativas de fazê-lo em 2021.
"Por enquanto temos evitado coisas com grupos maiores, porque controlar as crianças é superdifícil", prossegue Lion. "E não foi fácil fazer o isolamento social na periferia, até por causa do tamanho das casas. Então por enquanto não queremos estimular aglomerações."
O projeto, mesmo que paralisado, é parte de um grupo de iniciativas que tentam unir comunidades, entidades privadas e poder público para criar mais espaços abertos, coloridos e comunitários, inclusive pensando no pós-pandemia.
"A crise da covid-19 trouxe a necessidade de repensar a utilização dos espaços públicos e as diferentes formas de se locomover pela cidade", afirma o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), que promove as chamadas "práticas de urbanismo tático" — as quais, à semelhança do projeto em Parelheiros, limitam a circulação de carros (ou forçam a redução de velocidade) em determinadas ruas, promovem o alargamento de calçadas e, com tinta no chão, "dedicam espaços para os pedestres e ciclistas se deslocarem pelas cidades".
O ITDP cita o caso da Nova Zelândia, onde o governo anunciou, dentro das medidas de combate à covid-19, 72 iniciativas de urbanismo tático para até junho de 2021, com objetivo de "reduzir o trânsito e criar ambientes mais agradáveis para adultos e crianças andarem, pedalarem e brincarem (...) e deixar nossos distritos comerciais mais vibrantes".
No Brasil, já existem experiências com o urbanismo tático. Um exemplo vem de Belo Horizonte, onde o ITDP implementou, em 2019, com a Empresa de Transporte e Trânsito da cidade, uma intervenção temporária para reduzir a velocidade dos veículos e aumentar a segurança de pedestres em Cachoeirinha, um bairro que concentra três escolas.
O desafio, nesses casos, é tirar ganhos permanentes de intervenções temporárias.
Em São Paulo, uma ação do tipo transformou em 2019 a rua em frente a uma escola em Itaquera (zona leste), onde a travessia a pé era insegura, ampliando a calçada e criando uma nova rotatória, ilha para pedestres e mudando a direção de ruas próximas, dentro de um projeto piloto do programa Rota Escolar Segura.
Medição realizada pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) aponta que, desde então, diminuiu a velocidade média dos carros que passam por ali e aumentou a quantidade de pedestres que atravessam apenas nas faixas corretas. A sensação de segurança dos pedestres aumentou de 20% a 30%, a depender do ponto da travessia, para 80% a 90%.
No entanto, os desenhos lúdicos que coloriam a rua em frente à escola foram se desgastando e desaparecendo com o tempo, conta à BBC News Brasil o líder comunitário local Eduardo Mello, que reivindica sua manutenção. "Muito pouco da pintura sobrou. Foi bom enquanto durou."
A assessoria da CET informou que está elaborando um projeto para "a revitalização da sinalização horizontal".
'Cidade sob a ótica das crianças'
"O temporário é uma estratégia para chegar no longo prazo, (...) para as pessoas pressionarem para que (iniciativas do tipo) sejam implantadas de forma definitiva", diz à reportagem Laís Fleury, coordenadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana, de defesa dos direitos da infância.
"Mudar, planejar e viver a cidade sob a ótica e necessidade das crianças é uma quebra de paradigma. Há inclusive uma inversão de prioridades. É deixar de investir em uma cidade para se passar de carro e em espaços privados, e investir em um desenho de cidade que seja voltado mais para as pessoas, que valoriza os espaços públicos e a caminhabilidade."
A organização recém-lançou no Brasil o livro Cidades Para Brincar e Sentar, relatando a experiência de Griesheim, um pequeno município alemão que ganhou fama como "cidade para brincar" depois de implementar intervenções urbanísticas simples ? desde pontos coloridos no chão até barras para subir ou pular instaladas nas calçadas ? que enriqueciam e tornavam mais seguro o trajeto das crianças.
De quebra, as intervenções serviam para idosos e mães com crianças de colo descansarem e se apoiarem e para orientar visualmente motoristas a reduzir a velocidade.
"Isso traz sensação de liberdade e aventura, algo por que as crianças anseiam", diz Fleury. No âmbito da pandemia, "quando pensamos no espaço público, temos mais espaço e arejamento. Junto com os cuidados de máscara e distanciamento social, (esses locais) são um bom antídoto."
A ideia em Grisheim parte de um pressuposto que já é aplicado em projetos que começam a avançar no Brasil, de projetar ações literalmente sob a perspectiva infantil. É o mote de uma iniciativa internacional chamada Urban95, que convida gestores a tentar enxergar a cidade a partir de uma altura de 95 cm, que é a altura média de uma criança de 3 anos.
No Brasil, três cidades ? Boa Vista, Recife e São Paulo ? fazem parte do projeto desde o início, e outras 11 (Jundiaí-SP, Fortaleza-CE, Aracaju-SE, Campinas-SP, Ilhéus-BA, Niterói-RJ, Crato-CE, Pelotas-RS, Ubiratã-PA e Brasileia-AC) passaram a participar neste ano.
"É bom lembrar que 65% das crianças pequenas do Brasil estão fora da creche. Então o espaço de desenvolvimento delas é justamente na cidade ? acompanhando a mãe na farmácia, indo para a casa da avó ou brincando na rua", afirma Claudia Vidigal, representante no Brasil da fundação holandesa Bernard Van Leer, que cofinancia os projetos da Urban95 e dá consultoria a gestores públicos em como, por exemplo, incluir as necessidades da primeira infância em suas obras de infraestrutura.
Outro eixo é facilitar o trânsito das crianças aos serviços básicos da cidade, como escolas e postos de saúde. "A ideia é pensar de forma intersetorial: no caminho para o serviço público, a criança tem algo lúdico, uma árvore, um banco?", explica Carolina Guimarães, coordenadora da Rede Nossa São Paulo, que participa dos projetos junto à Bernard Van Leer.
A continuidade dos projetos em meio a trocas de gestão é um desafio, diz Vidigal, mas no Urban95 as estratégias têm sido conduzidas por servidores municipais de carreira com os nomeados, "para que a agenda seja mantida" mesmo se houver mudanças de prefeitos.
De modo geral, porém, nem todas as propostas sobrevivem a cada período eleitoral. De volta ao Jardim Ângela, que abre esta reportagem, após as entrevistas com as crianças, foi elaborado um concurso para projetar intervenções urbanísticas que melhorassem e deixassem mais seguro o trajeto delas pelo bairro.
O projeto vencedor previa mudanças nas escadarias dos bairros, para transformá-las em passagens mais acessíveis e aprazíveis para as crianças e para a comunidade, diminuindo os riscos de atropelamento.
No entanto, o projeto, mesmo tendo sido doado à cidade, ficou parado com duas sucessivas trocas de gestão: de Fernando Haddad (PT) para João Doria e deste para Bruno Covas (ambos do PSDB).
"Depois da doação, conversamos com técnicos da prefeitura, mas o projeto ainda não se realizou. Assim, seguimos em contato com a prefeitura procurando dar continuidade nesse tipo de iniciativa", diz o Estúdio Mais Um, escritório de arquitetura responsável pela proposta de intervenção.
Consultada pela BBC News Brasil, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano afirma que o projeto não chegou ao conhecimento da atual gestão.
Em contrapartida, o órgão cita mais dois programas do tipo em andamento na cidade: um de urbanismo social em regiões vulneráveis e o Territórios Educadores, que implementa, em áreas da periferia paulistana, intervenções de segurança viária e requalificação do espaço público (por exemplo, bancos que sirvam tanto para crianças pequenas brincarem quanto para mães de bebês descansarem e trocarem fraldas), dentro da Política Municipal Integrada de Primeira Infância.
Ao mesmo tempo, diante de tantos problemas estruturais nas cidades, de calçadas intransitáveis à falta de saneamento, por que priorizar ações do tipo?
Para Laís Fleury, do Alana, "não tem um problema mais importante do que o outro. O direito à cidade e à natureza é tão importante quanto os demais".
"Se olhamos sempre pela lógica da privação, não vamos ter direito a nada na cidade", argumenta.
"As cidades têm muitas áreas ociosas, como esquinas e locais que com restos de obras, que podem ser ressignificados como espaços de convivência e lazer a um baixo custo. Precisaremos de mais espaços com árvores, de espaços que tenham participação dos moradores, que sirvam para a desconexão, para a contemplação e como alternativas de lazer."
Outro ponto levantado por especialistas é que investimento de pequena escala em qualidade de vida para crianças pequenas tem o potencial de oferecer substanciais ganhos de longo prazo a cidades e países, ao aumentar as chances de produtividade futura dos cidadãos, melhorar sua qualidade de vida e reduzir custos com saúde, por exemplo.
Em tempos de eleições municipais, porém, em muitas cidades do país a infância não costuma ser um público-alvo de propostas políticas para além da construção de creches, aponta Carolina Guimarães.
Nem todos os gestores, diz ela, "estão muito atentos a ver a cidade como um laboratório ou a pensar na política pública de redução de riscos e de custos a longo prazo".
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