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Em Mianmar, primeira banda só de garotas desafia censura e desconfiança até da própria família

Integrantes da primeira girl band de Mianmar prometem manter a própria cultura - Divulgação/Me N Ma Girls
Integrantes da primeira girl band de Mianmar prometem manter a própria cultura Imagem: Divulgação/Me N Ma Girls

Bia Rodrigues

Do UOL, em São Paulo

01/02/2012 06h00

Elas nasceram em um país com um governo ditatorial. Aprenderam a viver com a censura e agora podem representar a transformação de uma nação. Cinco garotas, todas na faixa dos 20 anos, estão desafiando uma sociedade acostumada a ter suas vontades reprimidas para realizar o sonho de seguirem a carreira artística. O grupo Me N Ma Girls é o primeiro formado por mulheres em Mianmar, um país do sul da Ásia que viveu sob um regime militar ditatorial de 1962 até o ano passado. O novo regime "civil" do país ainda é liderado por militares e ex-militares.

A banda foi idealizada pela dançarina australiana e designer gráfica Nicole May, que visitou Mianmar em 2009 para ensinar música em orfanatos. Encantada pelo país e pela cena musical local, ela se uniu a um empresário birmanês para formar a girl band.

“Eu queria algo original ao invés de apenas copiar artistas internacionais. Percebi que a atuação de cantoras era tímida e refletia a cultura local. Junto com um empresário, criei o Tiger Girls”, contou por e-mail Nicole May, a Nikki, à reportagem do UOL. “Precisava de meninas com energia e magnetismo. Meninas que acreditassem que cantar com o coração era importante. Para mim, criar uma banda como essa era um bom modo de mudar”, disse Nikki.

As cinco garotas foram escolhidas em um processo que teve a participação de 120 candidatas que responderam ao anúncio da australiana. “Em 2010, participamos de uma audição para formar a banda Tiger Girls. Disputamos com mais de 100 garotas e fomos escolhidas. Cantamos e dançamos a coreografia com a Nikki em frente aos jurados. Foi assustador! Mas fomos selecionadas”, contou Lung Sitt Ja Moon, conhecida como Ah Moon, acrescentando que elas não se conheciam antes de formar o grupo.

Depois de um ano, o empresário local desistiu da banda porque "queria meninas com pele clara e corpos esguios para serem uma cópia de outros grupos". “Nós nos separamos [do empresário] e as meninas me acompanharam para formar o Me N Ma Girls e ter controle total sobre sua produção”, contou Nikki.

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Desafios

Mas optar pela carreira artística em um país como Mianmar é enfrentar os olhares desconfiados da família e da sociedade. “Minha família me deu permissão, mas só depois que me formei na universidade. Agora que sou graduada, posso seguir meu sonho. Minha mãe e minhas irmãs sempre me ajudam”, contou Su Pyae Mhu Eain, a Cha Cha.

“Eu sempre quis seguir a carreira artística. Mas meus pais me pediram para investir em educação também. Eu falo cinco línguas: birmanês, kachin (a língua do meu grupo étnico), francês, russo e inglês”, disse Ah Moon.

Fica claro que existe um choque de gerações no país quando cinco meninas escolhem um estilo de vida diferente do restante da sociedade. “As pessoas mais velhas não entendem nossa escolha porque há um conflito de gerações. Eles não gostam de nos ouvir cantando, de nos ver dançando e voltando tarde para casa. Para eles, a vida de cantora é um pouco estranha. Eles não tiveram a chance de trilhar seus próprios caminhos, mas nós temos”, disse Htike Htike Aung, ou apenas Htike Htike.

Além de enfrentar a resistência dos mais velhos, a censura é uma realidade na vida do grupo e elas precisaram aprender a lidar com a realidade política de Mianmar.  “A censura afeta diretamente nossa banda porque se eles não aprovam nossas letras e nossos vídeos não podemos distribuir para o público. Agora o país está saindo do regime militar e a censura tem diminuído. Então podemos usar shorts, saias curtas e nossas perucas coloridas [que chegaram a ser proibidas]”, disse Htike Htike.

Apesar de suas roupas nas apresentações e vídeos chocarem os mianmarenses, as meninas afirmam que não pretendem esquecer sua própria cultura para se enquadrar na cultura ocidental. “Nós queremos ser modernas e livres, mas vamos continuar respeitando nossa cultura”, disse Htike Htike. “Podemos representar uma mudança na sociedade de Mianmar, se o público nos apoiar e nos seguir. Se isso não acontecer, não poderemos ser consideradas um símbolo de uma nova fase”, disse Lalrin Kimi, conhecida como Kimi.

Para a australiana que idealizou a banda, a auto-censura também é um problema real para a banda. “Em uma ditadura militar, a coisa mais terrível é a auto-censura. Todos os dias as garotas precisam dizer claramente no que elas realmente acreditam e o que desejam. Elas precisam enfrentar seus limites para alcançar seus sonhos”, analisou Nikki.

As cinco integrantes vivem muitas novidades desde que formaram a banda. No ano passado, elas fizeram uma viagem ao exterior pela primeira vez: foram a Bancoc filmar o videoclipe da música “Liar”.  “Nenhuma de nós tinha saído de Mianmar até então. Entramos em um avião pela primeira vez e ficamos com medo. Fomos assistir a um filme de terror em Bancoc e não consegui ver até o final. Voltei para o hotel sozinha em uma grande cidade”, contou Wai Hnin Khaing.

Como todo grupo musical, as cinco jovens sonham com o sucesso. “Queremos conquistar todo o tipo de pessoa. Queremos fazer sucesso em Mianmar e no mundo. Depois vamos ajudar quem precisa. Eu gostaria de doar parte do dinheiro que podemos ganhar para ajuda humanitária no meu país”, afirmou Cha Cha. Enquanto não se tornam famosas, elas lutam e ensaiam todos os dias, sem patrocínio e recursos, em busca de reconhecimento. Porque agora, segundo elas, é possível lutar por seus sonhos em Mianmar.