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Venezuelanos buscam tesouro em rio poluído para vender e ter o que comer

Scott Smith

Em Caracas (Venezuela)

11/01/2018 04h00

Ángel Villanueva se movia nas águas turvas do rio Guaire, um canal pútrido que serpenteia pela capital venezuelana, na esperança de encontrar algum tesouro.

Enfiou as mãos no leito do canal pouco profundo, afastando o rosto do cheiro fétido. Depois se levantou, deixando que terra e pedras caíssem entre seus dedos e buscando um fecho de colar, anéis perdidos ou qualquer outro precioso pedaço de metal que pudesse vender para conseguir comida. 

Villanueva, 26, procurava junto com outras duas pessoas, sem perder de vista as nuvens escuras nas montanhas que cercam Caracas. A chuva poderia começar a qualquer momento, dando a eles poucos minutos para sair ou morreriam arrastados pela água.

"Trabalhar no Guaire não é fácil", comentou. "Quando lhe dá, dá. E quando lhe tira, tira a sua vida."

As imagens de venezuelanos pobres buscando comida no lixo em Caracas se transformaram em um símbolo da profunda crise econômica no que foi um dos países mais ricos da América Latina. Menos visíveis são os jovens e crianças que procuram nas águas poluídas do Guaire qualquer pedaço de metal com que possam ajudar a alimentar suas famílias.

Às vezes parecem estar brincando, sem camisa e rindo em grupos. O sol se reflete em suas costas dobradas quando se agacham, tiram pedras e as jogam para o lado com um borrifo de água.

venezuela - Ariana Cubillos/AP - Ariana Cubillos/AP
Ángel Villanueva
Imagem: Ariana Cubillos/AP

A água está muito suja, pois o canal recebe a chuva de ruas e encanamentos, assim como rejeitos industriais e algum tesouro ocasional.

"Desde que me lembro, o Guaire era um esgoto a céu aberto", comentou Alejandro Velasco, nascido em Caracas e professor de história latino-americana na Universidade de Nova York. "Parece refletir a profundidade e a extensão do desespero desencadeado por esta crise em particular." 

Depois de quase duas décadas de governo socialista, a produção de alimentos e petróleo afundaram em meio a uma gestão deficiente dos recursos estatais, e a queda mundial dos preços do petróleo mergulhou muitos venezuelanos no desespero.

Toda manhã, os catadores descem ao Guaire de seus bairros nos morros. Alguns envolvem a ponta dos dedos com fita adesiva para se proteger de cortes e infecções, ignorando qualquer possível efeito prejudicial em longo prazo de passar horas dentro da água suja todos os dias. 

Os pedidos para que se limpe o rio, assim como os milhões que já foram investidos, não deram resultado.

O falecido presidente Hugo Chávez admitiu em 2005 a má situação do rio e prometeu uma limpeza total. "Convido-os a tomarmos banho no Guaire... logo", prometeu ele na televisão. 

O Banco Interamericano de Desenvolvimento interveio em 2012 com um empréstimo de US$ 300 milhões para um ambicioso projeto de construir usinas depuradoras e tratar os resíduos que chegam ao rio. 

Quase seis anos depois, a água continua suja e o projeto de limpeza conseguiu só uma pequena parte de seu objetivo. Representantes do BID não quiseram fazer comentários para a reportagem, nem os líderes do governo venezuelano se pronunciaram sobre quando poderá ser limpo.

Alguns trechos do rio cheiram a esgoto, enquanto outros emitem um odor agressivo que lembra combustível, um fedor que fica no nariz durante horas após a pessoa se afastar de suas margens.

O Guaire voltou a chamar a atenção em meados de 2017, quando moradores que protestavam contra o governo de Nicolás Maduro o cruzaram para escapar dos gases lacrimogêneos atirados pelos policiais antimotins.

Na maioria dos dias, os que procuram no rio não são percebidos por outros moradores de Caracas, que passam ao lado em uma via expressa elevada, oculta por barreiras de concreto.

Uma mulher que passava com um carro de bebê por uma passarela, um dos poucos lugares de onde se vê o rio, olhou para as dezenas de pessoas que procuravam na água. 

"Que vergonha para nosso país!", disse. 

Villanueva mora com seu pai, um militar aposentado, em um dos bairros mais pobres e perigosos de Caracas. Ainda não consegue aceitar a morte de sua mãe, vítima de um derrame cerebral. Ela o havia animado a ir à universidade.

Ele queria ganhar dinheiro, mas só conseguiu empregos mal pagos para o Estado, como varrer ruas. O salário mínimo para funcionários públicos na Venezuela equivale a menos de US$ 7 ao mês, ao câmbio do mercado negro.

A comida se tornou cada vez mais difícil de conseguir e de pagar. Estima-se que 75% dos venezuelanos perderam em média 8,7 quilos no ano passado, segundo uma pesquisa recente.

Villanueva começou no rio há seis meses, convidado por um amigo. Em seu primeiro dia conseguiu US$ 20 e se interessou, apesar das piadas de seus vizinhos que lhe diziam para ficar longe, porque ele fede como o Guaire.

Outro catador que trabalha com Villanueva levava um frasco plástico pendurado do pescoço, onde ia guardando suas descobertas. Colocou-as na palma da mão para mostrar elos quebrados de uma corrente e uma moeda de ouro, que possivelmente valha algo na Praça Bolívar, onde há comerciantes que compram ouro.

Villanueva não conhece ninguém que tenha morrido em um riacho, mas há muitas histórias de outros que foram arrastados e nunca mais vistos. O acúmulo de nuvens e o aparecimento de mais lixo que o normal nas margens rio acima lhe avisam que a água está subindo, e ele tem menos de 15 minutos para sair.

Ele sonha em ir embora da Venezuela para encontrar um emprego melhor. Mas por enquanto se arrisca procurando lixo no Guaire.