Terrorista passa por 'aprendizado da violência', diz neurocientista que estudou guerrilheiros
Um pai de família tem três filhos, com idades entre 20 e 23 anos, que vivem com ele em uma pequena cidade na selva colombiana. Um dia, este homem recebe a visita de combatentes, que exigem o envio de um dos filhos à guerrilha. Se ele recusar, toda sua família será morta. Se concordar, deve decidir qual dos jovens participará de uma sangrenta luta armada.
A história é real e faz parte dos muitos relatos ouvidos, ao longo dos últimos anos, por pesquisadores latino-americanos interessados em entender a mente de terroristas. Em meados de 2017, a revista “Nature” publicou um estudo elaborado por alguns desses especialistas, na busca por entender como funciona a mente de quem fala, fluentemente, a língua do terror.
Um resumo do que concluíram: o julgamento moral dos terroristas, levando em conta as causas e consequências de uma ação, é diferente daquele dos não criminosos, como detalhado mais adiante.
“Algumas situações, considerando a violência e a exposição [pelas quais os ex-combatentes passaram], desafiam a forma como vivemos ou pensamos sobre nosso cotidiano. Esse relato feito pelo pai dos três filhos, por exemplo, representa um dilema moral com o qual geralmente não nos deparamos”, afirma o psicólogo e neurocientista argentino Agustin Ibanez, um dos responsáveis pela pesquisa. Ele também é diretor do INCyT (Instituto de Neurociência Cognitiva e Translacional), ligado à Universidade de Favarolo e à Fundação Ineco (Instituto de Neurologia Cognitiva), na Argentina, e pesquisador da Universidade Adolfo Ibanez, no Chile.
Em entrevista ao UOL, Ibanez contou sobre os desafios e aprendizados de realizar, junto a outros profissionais durante um ano, uma pesquisa com 66 membros de um grupo paramilitar colombiano, classificado como terrorista por diferentes organizações e países (por questões de segurança, o nome do bando não é divulgado). Todos eles, presos à época das entrevistas, haviam cometido assassinatos --a média era de 33 vítimas, mas um superou a marca de 600 mortes. Também houve participação em massacres, roubos, sequestros e fraudes.
O projeto levou quatro anos, se considerado o tempo necessário para resolver questões administrativas e políticas envolvendo o acesso aos detidos. Além das entrevistas, os paramilitares responderam a questionários e participaram de tarefas para medir aspectos neuropsiquiátricos, neurocientíficos e neuropsicológicos.
Camadas de violência
Sua primeira lição, conta Ibanez, veio da necessidade de começar a entender as experiências pelas quais os ex-combatentes haviam passado.
Trabalhar com problemas ligados à violência exige uma mudança completa para um cientista. Você precisa abandonar os limites seguros do laboratório para entrar na complexa teia da vida social cotidiana
Agustin Ibanez, neurocientista
O pesquisador fala em um processo de “aprendizado da violência”, vivido pelos ex-combatentes, considerando que o conflito na Colômbia é permeado por fatores socioculturais extremos.
Muitos dos entrevistados haviam sido eles mesmos vítimas de massacres, passaram por situações de opressão e viveram em situações de miséria. Considere também níveis baixos de educação e diferentes tipos de abusos sofridos por crianças --inclusive sexuais. Além disso, a exposição intergeracional à violência, explica, pode contribuir para reforçar essas estruturas pré-estabelecidas e tornar uma cultura violenta ainda mais persistente.
O social é apenas um dos aspectos levados em conta. “O desvio de comportamento requer um entendimento em diferentes níveis, como predisposição genética, considerações neurocientíficas, estruturas psicológicas e explicações sociológicas”, afirma o pesquisador.
A visão mais adequada ao considerar um comportamento como o dos terroristas seria levar em conta esse fenômeno de diferentes causas relacionadas. Até o momento, não temos nenhum modelo científico capaz de integrar e entender a relação desses múltiplos fatores
Agustin Ibanez
A própria estrutura acadêmica dificulta essa compreensão, na opinião de Ibanez. Os pesquisadores, afirma, tendem a restringir as informações a seu campo de estudo e conhecimento, fazendo com que a “mente” estudada nos departamentos acadêmicos seja setorizada. Assim, deixa de corresponder a seu real funcionamento, quando tudo está integrado.
Terroristas sem estereótipo
Com base no que estudou, Ibanez é categórico ao dizer que nem todo mundo pode se tornar um indivíduo violento ou um terrorista. Mas reforça que as condições externas e experiências de vida têm um impacto considerável nas (faltas de) escolhas dos indivíduos.
Entender essa relação entre diferentes causas ajudaria também nos processos de redução de violência e reintegração de ex-combatentes, como o governo da Colômbia vem fazendo desde 2016, quando assinou um acordo de paz com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). “Não podemos desarmar um conflito sem desarmar a mentalidade dos comportamentos violentos.”
E a mudança desse comportamento passa por intervenções periódica, como programas de reabilitação e de apoio, em diferentes níveis, para promover a mudança. Isso inclui cuidados com a saúde, assistência psicológica e atividades para o indivíduo se sentir produtivo, como oportunidades profissionais. É comum ex-combatentes apresentarem altos níveis de agressividade e também aderirem a novas atividades relacionadas ao crime organizado.
A desmobilização dos indivíduos [envolvidos em conflitos armados] não significa a eliminação de uma forma de pensar terrorista
Agustin Ibanez
Como cada caso é um caso, o neurocientista defende a importância de uma abordagem personalizada no trabalho de reabilitação, descartando a ideia de que combatentes seguem um estereótipo.
O perfil dos participantes do estudo era bastante heterogêneo, exemplifica, sendo que apenas uma minoria apresentava traços de psicopatia ou níveis anormais de empatia. Alguns sofriam de estresse pós-traumático. A maioria havia se juntado aos paramilitares por razões econômicas, considerando que recebiam um salário. Apenas 13% o fizeram por motivação ideológica, e a religião não aparecia como um fator relevante --ao contrário do que acontece, por exemplo, nas organizações de extremismo islâmico.
Muitos dos combatentes ou suas famílias são vítimas da guerra. Às vezes, sua entrada na guerrilha é forçada ou indica um cenário melhor do que as condições anteriores
Agustin Ibanez
Aqui Ibanez repete outra história ouvida durante as entrevistas: a de Pedro, que se juntou à guerrilha depois de os pais terem sido mortos. Sem casa, dinheiro, em uma cidade esquecida pelo estado e com poucas chances de conseguir emprego, Pedro considerou a luta armada como sua melhor opção.
O pesquisador destaca que o terrorismo executado por paramilitares e por outros grupos não difere nas práticas desumanas e no abuso de inocentes. No entanto, há distinção se consideradas as origens e traços psicológicos de quem o pratica. Da mesma forma, o terrorismo na Colômbia se compara ao global. As especificidades só aparecem se consideradas a guerra tríplice --entre militares, paramilitares e guerrilhas--, a mistura de partidos políticos liberais e conservadores envolvidos no conflito e também a mescla de civis e traficantes de droga nesses embates.
Julgamento moral diferenciado
No estudo divulgado em 2017 --resultado dessa interação com os 66 terroristas, que foram comparados a 66 não criminosos--, os pesquisadores identificaram que os combatentes têm um julgamento moral diferenciado. Antes, uma breve explicação deste termo: as normas morais dos grupos vêm de valores convencionalmente aceitos, que guiam o comportamento das pessoas (uma espécie do que é ou não moralmente aceito fazer).
Ao julgar a moralidade de uma ação, indivíduos “comuns” dão mais importância às intenções do que aos resultados. Assim, ações focadas em causar danos, independentemente do resultado obtido, são moralmente menos aceitas do que aquelas em que os danos não são intencionais, mas sim acidentais.
Já os terroristas consideram moralmente apropriado tudo aquilo que visa a um objetivo, sem considerar a intenção. Em outras palavras, para os terroristas os fins justificam, sim, os meios.
A equipe argentina segue pesquisando o terrorismo e agora se aprofunda em diferentes aspectos do conflito armado na Colômbia: o processo de reabilitação dos ex-combatentes, as vidas dos oprimidos e dos opressores desse combate, a criação de menores em ambientes violentos de guerrilha. Com agências colombianas, trabalham também na implementação de programas para reintegrar aqueles que já participaram de conflitos na região.
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