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Moro deveria ter esperado para entrar na política, diz juiz da 'Lava Jato da Itália'

Gherardo Colombo, juiz da operação Mãos Limpas, no Fórum Mundial de Juízes, em Porto Alegre, em 2005 - Ronaldo Bernardi / Agencia RBS/Folha Imagem
Gherardo Colombo, juiz da operação Mãos Limpas, no Fórum Mundial de Juízes, em Porto Alegre, em 2005 Imagem: Ronaldo Bernardi / Agencia RBS/Folha Imagem

Lucas Ferraz

Colaboração para o UOL, em Roma

04/11/2018 04h00

Gherardo Colombo, 72, um dos magistrados que conduziu a histórica operação "Mani Pulite" (Mãos Limpas, em português) nos anos 1990 na Itália, tem ressalvas sobre a entrada do seu análogo brasileiro, o juiz Sergio Moro, no governo Bolsonaro. Não pelo fato em si, mas pelo timing.

"Deve haver um tempo entre a saída da magistratura e o ingresso na política", disse o magistrado italiano ao UOL.

Há 12 anos fora da magistratura, Colombo integrou um grupo de oito magistrados da Procuradoria de Milão que conduziu uma investigação que revolucionou o combate à corrupção no país e tornou-se exemplo em várias partes do mundo --incluindo o Brasil.

Um dos efeitos imediatos da operação foi a descrença com os políticos "de sempre" e a eleição, em 1994, de um empresário para primeiro-ministro: Silvio Berlusconi, mais tarde envolvido em diversos escândalos.

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"Deixei a magistratura porque esse sistema capilar e difuso, como é a corrupção na Itália, não pode ser enfrentado com processo penal. Tanto que a corrupção continua, apesar de tudo o que fez a Operação Mãos Limpas", diz Colombo.

Em uma trajetória semelhante à de Moro no Brasil, um dos colegas de Colombo, Antonio Di Pietro, virou celebridade na Itália e trocou a magistratura pela política. "Mas ele esperou um ano e meio. Primeiro, deixou a atividade de magistrado, depois entrou na política", destaca Colombo.

Além da nomeação, Di Pietro criou um partido, se elegeu para o Parlamento, mas a carreira não decolou; hoje ele é advogado.

No caso de Colombo, o combate à corrupção há 11 anos se dá de outra maneira. Ele trabalha com crianças e jovens. "A educação é o único caminho para mudar essa cultura", afirma.

A seguir, os principais trechos de sua entrevista.

UOL: Como recebeu a notícia de que Sergio Moro aceitou o convite para ser um superministro de Jair Bolsonaro?

Gherardo Colombo: Um juiz, se quiser, pode entrar na política, mas seguindo algumas regras. Independente dessas regras estarem escritas ou não.

Primeiro, seria muito oportuno que a escolha seja sem volta. Alguém que decide fazer política não pode mais ser magistrado. Segundo, deve haver um tempo entre a saída da magistratura e o ingresso na política. Terceiro, esse tempo deve ser bastante substancial, longo, principalmente para aqueles que ficaram famosos por causa de suas atividades como juiz.

Portanto, se aplicamos essas regras à história de Sergio Moro, ele deveria pelo menos ter esperado antes de entrar na política. Ele deveria parar de ser magistrado e esperar um pouco.

As coisas se complicam um pouco porque, se eu li bem, foram unificadas duas funções, Justiça e Segurança Pública. Vendo da Itália, porque eu avalio segundo a cultura jurídica italiana, há um problema muito forte.

Qual?

O ministério unido seria como, na Itália, se unificasse o Ministério do Interior e o da Justiça, que têm funções diversas e que podem ser conflitantes em alguma medida. Às vezes acontece que, pela segurança, se cometa ações que possam resultar em um processo penal. Na Itália, o Judiciário é independente do governo e, portanto, também do Ministério da Justiça, que pode, no entanto, abrir uma ação disciplinar contra aqueles que conduzem uma investigação, é aquele que fornece os meios aos magistrados. Se ele é também o ministro da segurança, todas as vezes que segurança e jurisdição parecem entrar em conflito, as coisas ficam complicadas.

Sergio Moro condenou e prendeu Lula, o que tornou o ex-presidente inelegível. Ele liderava as pesquisas, e sem sua candidatura, Bolsonaro venceu a eleição. O que pensa a respeito?

Às vezes, pode-se perder a imagem de independência que deve ter um juiz, também pelo comportamento sucessivo ao exercício da atividade na magistratura. Primeiro um é o juiz, e depois, quando termina de fazer esse papel, se torna parte de um sistema no qual influiu objetivamente. 

Me pergunto se, ao se colocar em uma matéria eleitoralmente sensível e sem nenhum intervalo, se tornando o ministro da força que venceu a eleição, as pessoas não venham a pensar que talvez ele não seja tão independente nem mesmo tenha sido antes, quando era juiz.

Isso aconteceu na Itália, não? O exemplo é seu ex-colega Antonio Di Pietro.

Mas Di Pietro esperou um ano e meio antes de entrar na política. Primeiro ele deixou a atividade de magistrado. E depois ele entrou na política.

Di Pietro teve um percurso muito turbulento na política, no sentido de que ele agora não faz mais essa função. Ele, contudo, primeiro esperou um tempo, um ano e meio. Ele havia saído das Mãos Limpas, a investigação seguiu adiante sem ele.

Ninguém pode dizer que foi uma decisão súbita. Não se pode dizer que foi uma grande polêmica a propósito do que ele fazia antes e o que ele fez depois.

Deve-se levar em consideração um aspecto anterior. Di Pietro entrou na política no governo de Romano Prodi, um expoente histórico da Democracia Cristã [partido de centro-esquerda]. E muitos da DC foram investigados e presos na Mãos Limpas. É quase como se Sergio Moro fosse ser ministro de Lula.

É muito diferente. E, ainda, Di Pietro foi ser ministro de Obras públicas, não o ministro da Justiça.

A decisão de Di Pietro afetou a imagem das Mãos Limpas?

As pessoas na Itália geralmente consideram que a operação terminou em 1996 [começou em 1992], mas não é verdade porque os processos sobre corrupção dos magistrados, contra ministros do governo, etc, seguiram. Eram ainda investigações das Mãos Limpas. Mas para a opinião pública ela terminou ali.

A minha ideia, que vale para Di Pietro e também para todos os outros casos, é que se perde [quando os juízes entram na política] em cada caso um pouco a credibilidade da investigação. E acho que a investigação foi um pouco prejudicada.

Bolsonaro disse em uma entrevista que o trabalho de Sergio Moro o ajudou politicamente. Isso é ruim para a Lava Jato?

Não sei o que dizer. Se Bolsonaro diz isso, e depois nomeia ministro da Justiça o maior intérprete da Lava Jato, as pessoas podem pensar que isso é uma recompensa.

Conhece outro caso semelhante ao de Moro?

Parece que Baltazar Garzón [juiz espanhol que virou celebridade ao prender Pinochet em Londres] também entrou na política na Espanha, tempos atrás. Ele também era muito conhecido pelas investigações que fez. Não tenho uma memória particular daquela história, portanto acredito que não tenha sido um caso assim tão clamoroso.

Nunca convidaram o sr. para entrar na política?

Sim, muito discretamente, mas só depois que eu tinha deixado a magistratura. E sempre disse não.

Na semana em que Moro decidiu se tornar ministro de Bolsonaro ele ainda cuidava dos processos da Lava Jato.

Na Itália, no primeiro governo Berlusconi [em 1994], foram convidados Antonio Di Pietro e Piercamillo Davigo para serem ministros. E os dois disseram não. Para virar ministro, Di Pietro esperou um ano e meio, era um outro governo, depois que ele deixou a magistratura, e foi para um cargo sem qualquer relação direta com a atuação dele anterior.

Sergio Moro sempre disse que a Operação Mãos Limpas era um exemplo para ele e a Lava Jato...

Sobre isso não estou muito de acordo. Já fiz dois ou três debates junto com Sergio Moro no Brasil e sempre sublinhei uma diferença muito importante entre a organização judiciária aqui e no Brasil.

Na Itália não é possível, muito justamente, um juiz exprimir sua própria opinião sobre o processo que está fazendo fora dos autos. Isso no Brasil acontece muito frequentemente. Esse é um aspecto.

O outro, ainda mais importante, é que na Itália é proibido ao juiz que faz a investigação processar e condenar o investigado. Tudo ao contrário daquilo que acontece no Brasil, onde Moro acompanhou a investigação e depois condenou Lula.

E agora, como Ministro da Justiça, o juiz que o condenou será o responsável por mantê-lo preso.

Sim, isso é uma coisa para refletir. É uma anomalia muito grande.