Em fórum com Dilma e Kirchner, esquerda latina ensaia autocrítica e analisa derrotas na região
Após 12 anos de 'kirchnerismo', Cristina foi derrotada por Mauricio Macri na Argentina em 2015. Em 2016, Dilma Rousseff foi tirada do poder, com grande rejeição popular no Brasil: nos últimos anos, a esquerda sofreu derrotas importantes, que colocaram fim a um período de liderança política nos dois maiores países da América do Sul.
E foi (também) sobre esse contexto político desfavorável para a esquerda que ex-presidentes e intelectuais debateram até a última sexta-feira (23) em Buenos Aires - mesma cidade em que, na próxima semana, será realizada a cúpula das 20 principais economias do mundo, o G-20.
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"Os partidos já não representam, como antes, os interesses sociais e populares porque estão dedicados ao clientelismo. Cada dia mais, os partidos se parecem mais com as ideias que as pessoas têm deles, de que não funcionam, que estão corrompidos, e é verdade. [...] Os partidos se desconectaram dos movimentos sociais. [É preciso] recuperar a sintonia”, disse Ernesto Samper, que governou a Colômbia nos anos 1990.
Discursos de autocrítica e de mea-culpa foram abundantes no chamado "Primeiro fórum mundial do pensamento crítico".
“Temos que ser frios e estudar (...) as virtudes, os erros, os limites, porque temos que nos preparar para uma segunda onda de governos progressistas na região", disse Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia -- único representante no fórum de um governo de esquerda que continua no poder na região.
O ex-presidente do Uruguai José Mujica, cujo sucessor governa o Uruguai, havia confirmado presença anteriormente, mas cancelou a participação.
Dilma e Cristina falam em pacto
“Mas tem que ter uma espinha dorsal, um coração, e é antineoliberal e antifascista”, disse, sendo bastante aplaudida pelo público. A organização diz que o evento teve 50 mil inscritos.
Em uma palestra com ares de comício, a senadora argentina Cristina Kirchner declarou que as esquerdas precisam se reinventar.
“As consequências do neoliberalismo que impacta negativamente os trabalhadores, os comerciantes, os intelectuais, os pesquisadores, inclusive os grandes empresários, pelas coisas que estão acontecendo em nosso país, nos obrigam a repensar como espaço político de propostas", disse a ex-presidente argentina.
Kirchner, que este ano tem evitado participar de eventos públicos, falou em organizar os setores críticos ao governos atualmente no poder na América Latina.
“Temos que criar uma frente social-cívico-patriótico que agrupe todos os setores agredidos pelas políticas do neoliberalismo, que não são de direita nem de esquerda. Não pode haver essa divisão, entre os que rezam e os que não rezam, entre nacional e popular. Isso é um luxo que não podemos permitir, porque em nosso espaço há lenços verdes e também azuis, e temos que aprender a aceitar isso sem levar à divisão de forças”, disse Kirchner.
Na Argentina, o lenço verde se tornou símbolo da luta pela legalização do aborto; o azul representa os que são contrários à interrupção voluntária da gravidez.
Sustentabilidade
Durante sua fala, o vice-presidente boliviano Linera elencou lições que ele considera pontos que a esquerda precisa aprender: “Sustentabilidade do crescimento econômico e o fim do paradoxo entre o crescimento econômico e a proteção ecológica”.
Nesse sentido, Gustavo Petro, senador, ex-prefeito de Bogotá e segundo colocado nas eleições presidenciais da Colômbia deste ano, defendeu que a esquerda precisa investir em uma base econômica que respeite a natureza.
“[Precisamos] sair do extrativismo, [...] insustentável e construtora de uma espécie de política da morte no mundo, e passar a construir uma sociedade do conhecimento que seja a base de uma produção diferente, de uso de energias limpas, de uso intensivo da terra na produção de alimentos. Isso geraria uma opção muito diferente para a América Latina que até agora gerou o petróleo, o carvão”, afirmou em entrevista ao UOL.
“O capitalismo à base de energia fóssil nos leva a mudanças climáticas. E uma esquerda que quer construir justiça social sobre a base da produção e exportação dessas matérias primas, na minha opinião, é insustentável porque está ajudando a desgastar as bases da vida no planeta”, completou.
Em conversa com o UOL, o Nobel da Paz argentino Adolfo Pérez Esquivel defendeu que as esquerdas latino-americanas pensem no futuro. “Temos que construir a médio e longo prazo e não apenas a reboque das conjunturas. E precisamos repensar os países que queremos”, afirmou.
Ausência de Mujica
O ex-presidente do Uruguai José Pepe Mujica era uma das autoridades que havia confirmado presença, mas não compareceu ao fórum organizado pelo Clacso (Conselho Latinoamericano e Caribenho de Ciências Sociais), rede internacional que reúne cerca de 600 centros de pesquisa da região.
Sua assessoria de comunicação havia dito que a ausência seguia recomendação médica. Mas, mais tarde, seu grupo político divulgou uma carta assinada por Mujica na qual ele apresentava outros argumentos. Ele comenta que o fórum vinha sendo tratado pelos meios de comunicação como uma "contracúpula", em oposição à reunião do G20.
“Entendo que essa não é a intenção do Clacso, mas não devo contribuir para criar obstáculos subjetivos que já foram abundantes na história do rio da Prata [Uruguai e Argentina são separados por esse rio]. Sou obrigado a ser muito prudente nesta conjuntura tão especial e colaborar com o interesse do meu governo e do meu povo. Por essas razões, lamento por não poder cumprir com o compromisso que havia firmado”, disse.
Esquerda na América Latina
A partir dos anos 2000, vários países da América do Sul foram governados por partidos de esquerda, de forma simultânea. No Brasil, o PT esteve à frente do país entre 2003 e 2016, com os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
A Argentina foi presidida por Néstor Kirchner e Cristina Kirchner entre 2003 e 2015. Michelle Bachelet governou o Chile em duas ocasiões, entre 2006 e 2010 e depois entre 2014 e 2018. Rafael Correa presidiu o Equador entre 2007 e 2017. Fernando Lugo foi presidente do Paraguai entre 2008 e 2012. Atualmente, todos esses países são governados por líderes de direita.
A esquerda se mantém no poder no Uruguai desde 2005 (dois governos de Tabaré Vázquez e um de Mujica), na Bolívia desde 2006, com Evo Morales, e na Venezuela desde 1999. Nicolás Maduro preside o país desde 2013. Era vice-presidente de Hugo Chávez e assumiu em seu lugar após sua morte.
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