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Haiti: Missão de 13 anos do Exército brasileiro deixou legado questionável

Soldado brasileiro da Minustah faz patrulha na favela de Cite Soleil, em Porto Príncipe, em 2014 - Hector Retamal/AFP
Soldado brasileiro da Minustah faz patrulha na favela de Cite Soleil, em Porto Príncipe, em 2014 Imagem: Hector Retamal/AFP

Letícia Macedo

Colaboração para o UOL, em São Paulo

11/07/2021 04h00

O assassinato do presidente Jovenal Moïse traz de volta às manchetes a instabilidade política no Haiti.

De certa forma, o incidente também leva a questionar qual foi o legado da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah), que teve seu braço militar comandado pelo Exército Brasileiro por 13 anos.

Inicialmente prevista para durar seis meses, a missão ficou no país de 2004 a 2017. A atuação de mais de 30 mil militares sempre foi exaltada pelo Exército com exemplo de intervenção que teria colocado em prática um modelo brasileiro de pacificação, mais focado na questão social do que na militar.

"A iniciativa da ONU veio após um golpe de Estado como uma missão de esperança, mas para muitos haitianos a Minustah foi uma catástrofe, que não trouxe realmente a estabilização social e política que se esperava", afirma o haitiano Eddy Celestian, que estuda ciências sociais na Universidade Federal da Fronteira Sul, em Chapecó (SC).

Ele deixou a capital Porto Príncipe em 2016 e conta que, durante a ocupação, o Haiti parecia um país mais tranquilo.

"Mesmo com o que eu chamo de derivas autoritárias da Minustah, o país parecia mais calmo. Mas, ao longo do tempo, a missão perdeu seu sentido. Acabou se tornando mais um exercício militar do que uma operação de paz. Tornou um castigo para os haitianos e também para uma parte dos militares que estavam sofrendo naquela situação", afirma Celestian.

As milhares de denúncias de abusos sexuais contra a Minustah —praticados por soldados, funcionários civis da ONU e de toda a organização da ajuda humanitária— também mancharam a imagem da operação.

Vários integrantes da Minustah tiveram filhos com mulheres haitianas, muitos frutos de estupro, e essas crianças estão atualmente crescendo sem os pais.
Eddy Celestian, estudante haitiano

"A participação brasileira evidencia o contraste entre prática e retórica. O discurso é permeado pelo princípio da não indiferença, marcado por fortes traços humanistas. Na prática, defendiam interesses, sobretudo, dos Estados Unidos e da França", diz ele.

'Nada de bom'

O economista haitiano Jean Jores Pierre, da Universidade do Estado do Haiti, também tem uma análise pessimista. "Muitos haitianos acreditam que a Minustah não trouxe nada de bom."

"Foi um fracasso porque acabou fazendo parte do infortúnio do país, os soldados reintroduziram a cólera no Haiti, matando mais de 10 mil pessoas, e a ONU não fez nada para dar alguma compensação para essas famílias", diz.

A epidemia de cólera teria começado após o esgoto não tratado de soldados nepaleses infectados ser jogado no rio mais importante do país.

O professor de relações internacionais Miguel Borba de Sá, da Faculdade de Coimbra e integrante da Rede Jubileu Sul, afirma que, após dois anos em território haitiano, já havia o "discurso militar de sucesso da missão registrado em livros, jornais e revistas".

Sucesso pra quem? Foram feitas ações interessantes após o terremoto, mas a ocupação militar brasileira ajudou a estabilizar um governo golpista, após a queda do Jean Bertrand Aristide. Já a democracia e os direitos humanos não foram consolidados. Se um ataque desses acontece contra o presidente Moïse, imagine o que ocorre nas outras camadas da população.
Miguel Borba de Sá, professor de relações internacionais

Ele, que foi coordenador de uma campanha pela retirada das tropas do Haiti, destaca que a missão pode ser considerada um sucesso no desenvolvimento do controle para uma camada específica da população.

"O modelo de pacificação envolveu populações negras e pobres, consideradas perigosas e à beira de revoltas. Portanto, populações que precisariam de uma gestão militar. Existe um certo efeito bumerangue, um mútuo aprendizado, nas políticas de segurança entre Haiti e Rio de Janeiro."

Desta maneira, na opinião do professor, a missão teve a função de, com a chancela da ONU, exaltar o papel das Forças Armadas.

"A missão foi um terreno fértil para uma geração inteira de militares que se relegitimou com o discurso: 'A gente que está aí para ajudar'. Hoje estamos vivendo no Brasil as consequências de um governo muito militarizado."

Interferência dos EUA

Jean-Bertrand Aristide, um padre da Teologia da Libertação que liderou o movimento contra a ditadura da família Duvalier (dos conhecidos Papa Doc e Baby Doc), foi o primeiro presidente democraticamente eleito do Haiti. Sofreu um golpe, mas conseguiu voltar ao poder para concluir o mandato.

Nos anos 2000, foi novamente eleito. Aos poucos, passou a sofrer pressão de instâncias multilaterais. Quando deixou o poder, o Haiti enfrentava uma grave crise econômica e duros bloqueios internacionais.

"Existe uma controversa carta de renúncia, que ele diz que não assinou, mas acabou sendo lida no Parlamento", afirma Borba de Sá, que fez sua tese de doutorado sobre as relações entre Brasil e Haiti.

As circunstâncias em que deixou o poder e, posteriormente, foi levado para um exílio na África por americanos também são obscuras.

Os EUA, que tinham intenção de manter no país um bom clima de negócios para suas indústrias ali instaladas, enviaram tropas no dia da queda de Aristide.

Os norte-americanos já estavam envolvidos na custosa e controversa campanha contra o terror no Afeganistão (2001) e no Iraque (2003). Foi, então, que o Brasil recebeu o convite, intermediado pela França, para participar da missão multilateral articulada no Conselho de Segurança.

"O Brasil acabou entrando em uma certa terceirização da política externa norte-americana de intervenções. A missão militar não se sustentou somente pela ingerência externa, foi se construindo uma administração em que muita gente se beneficiou", diz Borba de Sá.

"Diante dos problemas, o Brasil sempre recorreu à tática de lavar as mãos, como é comum na diplomacia, mas, como liderança militar, tinha sua responsabilidade. Quando soldados do Sri Lanka transformaram batalhão espaço de abuso sexual, o Brasil alegava que era uma questão dos soldados do Sri Lanka. Já a epidemia de cólera foi um problema dos nepaleses. Na verdade, todos estavam sob o comando brasileiro."