Sobrevivente de Hiroshima teme nova ameaça nuclear: 'Tudo some com a bomba'
Não pode se repetir. Não pode se repetir. É o que repete Kunihiko Bonkohara, 82, sobre as ameaças de um ataque nuclear na esteira da invasão da Rússia à Ucrânia. Sobrevivente da bomba de Hiroshima, ele recorre à história: "Essa radiação acumulada, até agora, não diminuiu em nada".
Bonkohara tinha 5 anos de idade quando, em 6 de agosto de 1945, os Estados Unidos lançaram uma bomba atômica sobre Hiroshima. "De repente ficou muito claro", revive, em entrevista ao UOL, os detalhes do dia em que sua vida mudou.
Ele estava no escritório onde o pai trabalhava, a cerca de 2 km de onde a bomba caiu. Além do clarão, conta ter ouvido uma grande explosão. Mal teve tempo de processar: o pai se jogou sobre ele e os dois foram para baixo de uma mesa.
Sem saber, foi a segunda vez que o pai o salvou no mesmo dia. Mais cedo, a mãe quis levá-lo ao próprio trabalho e o pai não permitiu. "Criança atrapalha muito." Uma das irmãs de Bonkohara estava com ela.
"Elas não voltaram para casa", conta. Os corpos nunca foram encontrados.
Meia hora após a bomba explodir, uma chuva radioativa começou a cair. Em contraste com o clarão que tomou conta da cidade no momento da explosão, Hiroshima ficou às escuras. A água cheia de fuligem lavou os ossos que ficaram à mostra em muitos cadáveres.
Os ossos brilhavam. Ficaram muito brancos depois da chuva. Era um brilho diferente."
Kunihiko Bonkohara, sobrevivente de Hiroshima
O rio Ota, que corta a cidade, estava "cheio de corpos". Os cadáveres, amontoados dentro de bondes, assustaram Bonkohara. "Alguns ainda seguravam a barra de apoio".
"As pessoas andavam com os braços assim por causa das queimaduras", demonstra ele, erguendo os dois braços na perpendicular do corpo. "Todo mundo pedia água sem parar", acrescenta.
Bonkohara acompanha atento o noticiário do conflito entre Rússia e Ucrânia. "Medo? Sim. Eu tenho medo da bomba. Tudo some com a bomba...". Para ele, qualquer tensão internacional pode desencadear uma terceira guerra mundial.
Temos que acabar com as usinas nucleares e bombas atômicas. Primeiro temos que diminuir [a produção] e depois não fabricar nunca mais."
Sobrevivente pela paz
Aposentado e vivendo no Brasil há mais de 60 anos, Bonkohara diz que "está com a cabeça fraca" desde o início da pandemia. No entanto, apresenta a cronologia daquele dia nos mínimos detalhes. Parte, admite, porque concede palestras e entrevistas constantemente sobre o que viveu.
Desde 2008, ele integra o projeto "Sobreviventes pela Paz", idealizado pelo produtor cultural Rogério Nagai. O propósito é passar uma mensagem de paz para que ataques como o de Hiroshima não se repitam.
Por causa do projeto, Bonkohara já visitou 50 países para contar sua história.
Em 2016, ele e outros dois sobreviventes que também vivem no Brasil passaram a estrelar o espetáculo "Os Três Sobreviventes de Hiroshima", onde cantam, dançam e se expressam por meio da arte. Nagai acredita ser a primeira peça no mundo estrelada por sobreviventes da tragédia.
Os teatros lotaram e recebemos muitos abraços. A peça tem uma parte muito triste, que fala da bomba, mas termina mostrando as pessoas alegres e livres."
Kunihiko Bonkohara, sobrevivente de Hiroshima
Com a pandemia, as apresentações foram interrompidas. "Agora seria bom voltar", comenta Bonkohara. A união com outros sobreviventes, já no Brasil, levou Bonkohara a expor, não só o trauma, mas também as consequências de um ataque nuclear.
"Foi na Associação das Vítimas das Bombas Atômicas no Brasil que escutei novos relatos. Foi muito triste", observa. A associação foi criada em 1984 em São Paulo e reúne os hibakushas — termo japonês para "pessoas afetadas por bombas" e designado aos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki.
Antes, Bonkohara não falava sobre o que vivenciou em Hiroshima. Ele, que deixou a cidade aos 20 anos para viver no Brasil, conta que havia muito preconceito contra os sobreviventes: medo de que passassem doenças adiante, receio com cortes e queimaduras e desconhecimento sobre os efeitos da radiação no corpo.
Muito do que assimilou, também, veio por meio das histórias de outros sobreviventes: aos 5 anos, a sua percepção do mundo era diferente. Por uma macabra coincidência, a bomba que mudou para sempre sua vida de criança era chamada de "little boy" (termo que, em inglês, significa "menino pequeno").
A tragédia aos olhos da criança
"Criança não pensa assim, de imediato. Foi depois da bomba de Hiroshima que comecei a sentir os efeitos. Desmaiava, meu corpo inteiro tinha pus, saia pus por todo o lado. Tive tuberculose e fiquei sem ir à escola. Depois de 30 dias, 40 dias [da bomba], faleceram alguns professores. Mas as crianças vítimas da bomba atômica não falavam sobre isso, havia muita discriminação."
Bonkohara não teve queimaduras, mas cortes no braço provocados por estilhaços de vidro caíram sobre ele no momento da explosão. Por causa disso, precisava trocar curativos nos braços para garantir a cicatrização — e na impaciência de criança, só aceitava trocá-los mediante negociação.
"Se deixássemos trocar o curativo, nos davam docinhos de soja", lembra.
Os problemas de saúde foram vários. "Não apareceu câncer até agora", diz. O pai e outros dois irmãos — os familiares que sobreviveram à bomba — não tiveram a mesma sorte. Todos desenvolveram câncer e morreram. Restou apenas ele.
Aos 20 anos, durante um exame médico, foi diagnosticado com problemas cardíacos e temeu não viver para completar 30 anos. Isso pesou na sua decisão de mudar-se sozinho para o Brasil, "que estava recebendo japoneses", e recomeçar do zero.
No Brasil, viveu muitas vidas: foi lavrador, topógrafo, locutor e empresário. "Tudo o que você perguntar de bambu ele conhece, plantou durante muitos anos, é só perguntar", comenta Rogério Nagai.
O produtor cultural conhece a vida de Bonkohara tão bem quanto o próprio. "Aqui nessa foto não é você não, Bonko-san, você está nessa outra fileira aqui", corrige enquanto o aposentado indicava para a reportagem onde ele estava em uma foto da época de escola.
Casado há 20 anos, não teve filhos. Conheceu a mulher, neta de japoneses e nascida no Brasil, por meio de amigos em comum. Sua rotina inclui acordar cedo, fazer ginástica em casa, ler em japonês e se encarregar de cuidar do próprio jardim.
Quando fala sobre as flores, sorri e menciona a sakura, flor de cerejeira, que simboliza a esperança e o quanto a vida é efêmera.
Agora, lá em Hiroshima, está muito bonito, com muitas flores de sakura."
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