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Guerra da Rússia-Ucrânia

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Povo trino? Por que citação usada por Putin para países-irmãos é imprecisa

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente de Belarus, Alexander Lukashenko - Mikhail Klimentyev/Sputnik/AFP
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente de Belarus, Alexander Lukashenko Imagem: Mikhail Klimentyev/Sputnik/AFP

Camila Mazzotto

Colaboração para o UOL

14/04/2022 04h00

Desde o início da guerra na Ucrânia, em 24 de fevereiro, a expressão "povo trino" vem se repetindo nos discursos de Vladimir Putin, quando o Kremlin se refere aos países Rússia, Ucrânia e Belarus. Em mais de uma ocasião, o presidente russo mencionou as três ex-nações soviéticas como se fossem uma coisa só, como fez nesta terça-feira (7), durante encontro com o presidente belarusso, Alexander Lukashenko.

Em sua fala, além de afirmar que enxerga os três países do Leste Europeu como uma tríade, Putin disse que sempre tratou Belarus, fiel aliado da Rússia desde o início da invasão militar ao território ucraniano, como um irmão. "E nada mudou aqui nos últimos meses. Não tínhamos dúvidas de que, se alguém nos apoiasse, seria Belarus", disse, segundo a agência russa Tass.

A expressão "povo trino" ou "povo russo trino" já era utilizada pelo Kremlin ao longo de seu mandato como presidente e primeiro-ministro desde 2000, porém tem sido mais frequente em seu vocabulário em meio à guerra, que já se arrasta há 50 dias. Mas o que significa esse termo e quais são as implicações de seu uso?

O que é o povo trino?

A afirmação de que os povos da Ucrânia e de Belarus formariam uma tríade com a Rússia ou seriam "subnações" de uma única comunidade russa remonta aos tempos imperiais, na época da chamada "Rússia de Kiev".

Esse era o nome de uma confederação de povos eslavos, bálticos e finnicos do Leste europeu que eram governados por um príncipe viking, Rurik, no final do século 11, em torno do principado da Moscóvia (que passaria a se chamar Rússia muito mais tarde).

A confederação é vista como um "ancestral cultural" das atuais Belarus, Ucrânia e Rússia.

É impreciso historicamente

No entanto, é "historicamente impreciso" afirmar que essas três nações formaram uma única entidade nacional, afirmam historiadores do instituto de política internacional britânico Chattam House, porque não há uma linha contínua a ser traçada desta confederação fluvial até os atuais territórios russo, ucraniano e bielorrusso.

Ao longo dos séculos, a área que hoje corresponde à Ucrânia, por exemplo, foi tomada pelo Império Mongol, mais tarde pela Comunidade Polaco-Lituana, pelo Império Austro-Húngaro e pelo Império Russo.

Entre as duas guerras mundiais, partes do oeste da Ucrânia também foram governadas pela Polônia, Romênia e Tchecoslováquia.

Por trás da ideia de uma "nação trina", explicam os pesquisadores, há a premissa de que os povos que vivem no território da chamada "Pequena Rússia" (MaloRossiya) —como a Ucrânia era anteriormente chamada— e "Rússia Branca" (atual Belarus) constituíam apenas "sub grupos etnolinguísticos", aglomerados em torno de uma fictícia "Grande Rússia".

Mas isso, de acordo com os especialistas, equivale a negar que Litvinski e Ruthenians, situados na parte ocidental da então Rússia de Kiev, pertenciam ao Grão-Ducado da Lituânia: um poderoso estado multinacional que, no seu auge no século 14, controlava a maior parte da atual Lituânia, Belarus, Moldávia e Ucrânia.

"O conceito de nação trina ignora assim a base intrinsecamente europeia sobre a qual as autoidentidades nacionais ucranianas e bielorrussas foram construídas, antes que essas 'terras intermediárias' fossem conquistadas pela Rússia no final do século 18, russificadas no século 19 e sovietizadas no século 20", afirmam os analistas.

A história territorial e étnica desses países é complexa.

A Ucrânia, apesar de estar ligada à Rússia, também está entrelaçada às histórias da Polônia, da Romênia e da Igreja Ortodoxa Grega, por exemplo.

"A ideia de uma nação russa trina, portanto, rebaixa a singularidade das culturas indígenas que se desenvolveram nos confins ocidentais do império czarista, e notavelmente negligencia seus componentes linguísticos (rutenos) e religiosos (católicos e unianos) específicos".

Isso, no entanto, é uma construção ideológica, dizem historiadores.

Para os pesquisadores, o problema de atribuir uma herança exclusiva de Kiev aos príncipes moscovitas é que "distorce a história e é usado para justificar as atuais ambições irredentistas da Rússia em relação aos seus vizinhos ocidentais".

Escolha ideológica

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, se encontraram no Kremlin, em Moscou - Mikhail KLIMENTYEV / SPUTNIK / AFP - Mikhail KLIMENTYEV / SPUTNIK / AFP
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, em Moscou
Imagem: Mikhail KLIMENTYEV / SPUTNIK / AFP

Em um artigo intitulado "Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos", publicado no site do Kremlin em julho de 2021, o presidente russo, embora reconheça que "alguma parte de um povo pode tomar consciência de si mesmo como uma nação separada em determinado momento", apoia a ideia de que russos e ucranianos são "um só povo" e que Rússia, Ucrânia e a Belarus são, juntas, "uma única grande nação, uma nação trina".

Em termos territoriais, essa abordagem pode justificar a reivindicação russa de interferir nos assuntos internos dos estados vizinhos, negando-lhes o direito à soberania e integridade territorial —o ensaio apoia a anexação da Crimeia, por exemplo—, com implicações inclusive bélicas.

Isso, portanto, seria uma construção ideológica, dizem historiadores.

Leo Goretti, membro sênior do Programa de Política Externa do think tank italiano de relações internacionais IAI (Istituto Affari Internazionali), escreveu um artigo para defender que Putin usa esse pensamento para dar um "abraço imperial em 'territórios históricos' e povos baseados em afirmações muito dúbias sobre história e identidade".

"Como os historiadores sabem, tais especulações são facilmente fabricadas e reformuladas conforme a conveniência de cada um", afirmou.

O grupo de especialistas da Chattam House também disse a narrativa está por trás de declarações que questionam as raízes europeias mais amplas de Ucrânia e Belarus, levando à crença de que esses países não teriam o direito de "retornar" à Europa, se nunca fizeram parte dela propriamente.

"[Isso] prejudica injustamente as aspirações europeias de uma parcela significativa das populações de ambos os países", afirmam.