Qual o preço do sonho americano? Brasileira pagou R$ 100 mil e levou tiro

Fevereiro de 2024. No avião que decolava do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, rumo ao México, Adriana* (nome fictício), 27, ao lado do namorado, 28, carregava o sonho de uma vida melhor nos Estados Unidos, onde vivem cerca de dois milhões de brasileiros.

Eu tinha o sonho de conquistar coisas que, infelizmente, no Brasil, a gente não consegue com o salário mínimo muito baixo. Da região de onde eu sou (interior de Minas Gerais), a remuneração não é boa, mesmo com faculdade, porque não tem oportunidade de trabalho suficiente, disse a mineira.

Adriana conta que tentou por três vezes entrar nos Estados Unidos de forma legal, mas sem sucesso. Decidiu, então, contratar os serviços de coiotes, pessoas que guiam e facilitam a travessia de imigrantes através do México, a um custo de US$ 20 mil, cerca de R$ 100 mil. Ao chegar em Mérida, após uma viagem de mais de 20 horas de ônibus, o grupo ao qual pertencia foi preso. Liberados após 30 horas, seguiram para Cancun e, depois, Tihuana, onde o sonho ganhou cenário de pesadelo.

"Nos deixaram em uma casa e aconteceu um fato na rua, que não tinha a ver com a gente que estava lá para a travessia. A polícia começou a trocar tiros com outras pessoas, atingiram a casa onde estávamos e fui baleada. O meu namorado pediu ajuda e fomos levados pela polícia para um hospital particular", relata.

A bala atingiu o intestino grosso e se alojou no estômago de Adriana, que passou por uma cirurgia delicada para a retirada do projétil. Ficou internada por cinco dias e, nesse período, recebeu a visita de agentes que participaram da ação. Ela disse que foi ameaçada e pressionada a retirar a ocorrência, mas não o fez. O desejo era de voltar ao Brasil, porém, orientada por um policial da Guarda Governamental mexicana, decidiu seguir viagem rumo aos Estados Unidos.

O policial falou que eu passaria por dois aeroportos no México e, pela situação ser delicada, por não retirar a queixa e ter sido ameaçada, não tinha como garantir a minha segurança. Me aconselhou a seguir caminho. Cheguei aos Estados Unidos com sete dias de operada. Fiquei um dia e meio presa na imigração, pedi asilo e aguardo o desenrolar do processo.

Quase um ano após a chegada em solo norte-americano, já recuperada, Adriana aguarda o andamento do processo de pedido de asilo. Reside na região de Boston, em Massachusetts, e trabalha cerca de 12 horas diárias com faxinas, o que rende aproximadamente US$ 4.000 por mês. O namorado atua com delivery. Ela conta que não consegue ajudar a família no Brasil, pois ainda tem dívidas, inclusive com o coiote.

"Aqui a gente vive se equilibrando entre um aluguel absurdo, são bem altos, mas dá para sobreviver. Estamos em fase de adaptação, mas não considero uma vida ruim. Pagamos nossos impostos e já conseguimos adquirir algumas coisas, porque bens são muito acessíveis para nós aqui, uma realidade que não teríamos no Brasil".

A posse do presidente Donald Trump, o discurso e as medidas adotadas com relação à imigração têm causado apreensão. "Vivemos um futuro incerto. Ficamos muito inseguros porque a gente não sabe como vão ficar as coisas. Temos muitos conhecidos brasileiros que estão com medo", afirma.

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Questionada se faria tudo novamente, ela diz: "Não passaria isso nunca mais na minha vida. Assim que resolver tudo aqui, quero voltar a morar no Brasil. A realidade é completamente diferente do que todos pensam. Aqui realmente é possível conquistar coisas, mas você se torna escravo do trabalho".

Humilhada na deportação

O sonho americano de Carla* (nome fictício) teve início em 2022, após o divórcio, em Goiás. Com a filha de quatro anos nos braços, decidiu iniciar uma nova vida nos Estados Unidos com o apoio de coiotes. Pagou cerca de R$ 100 mil pelos serviços. "Estava passando por muitas dificuldades e minha mãe já morava aqui há muitos anos", conta.

Segundo Carla, a travessia foi tranquila. O grupo ficou próximo à fronteira, na casa de um coiote, que o levou até o muro de ferro e abriu o portão para que passassem. Foram presos na imigração e, depois, deportados.

A deportação foi muito difícil. Eles acorrentam somente os homens, prendem cintura, mãos e pés. As correntes ficam arrastando como se fossem escravos. Os pais são presos na frente dos filhos e das esposas. Não fiquei acorrentada em momento algum, mas é humilhante a forma que tratam a gente. Não deixam levar nada e jogam fora todas as nossas coisas. Só ficamos com documento e aparelho eletrônico. A minha filha chorou muito.

Após três meses da deportação para o Brasil, Carla resolveu tentar novamente a travessia via México. Disse que foi mais tranquilo, embora tenha ficado presa por 22 horas na imigração. A brasileira explica que justificou o seu pedido de entrada no país. Conforme combinado, compareceu ao ICE (Serviço de Controle de Imigração e Aduana dos Estados Unidos) três vezes. A audiência dela está marcada para 2026.

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Atualmente, ela vive em Jacksonville, na Flórida, estado com maior concentração de brasileiros no país. Mora com a filha, trabalha seis horas por dia e ganha cerca de US$ 700 (R$ 4.000) por semana. Em processo de documentação, no próximo mês se casará com o namorado norte-americano.

Está todo mundo com medo, mas só vai voltar (ser deportado) quem deve na Justiça. Aqui é bem melhor, tem segurança, ótimo ensino e é tudo organizado. Minha filha já está fluente em três línguas. Sonho em comprar uma casa e trazer meus dois filhos que ficaram no Brasil.

Apoio à comunidade

Ronaldo Felício, mais conhecido como 'Ronaldo Absoluto', 48, acumula mais de 300 mil seguidores nas redes sociais e reúne outras 36 mil pessoas em grupos no WhatsApp, onde divulga serviços e oportunidades de emprego. Natural de Governador Valadares (MG), uma das cidades brasileiras que mais exporta moradores para os Estados Unidos, chegou ao país há quase 22 anos. Vive com a esposa e dois filhos, trabalha na área de comunicação e se dedica a ajudar brasileiros, especialmente recém-chegados.

As maiores dificuldades enfrentadas pelos recém-chegados são relacionadas ao alto custo de moradia. A adaptação à língua e aos costumes americanos também. Além disso, muitos imigrantes, principalmente os que trabalham em serviços braçais, chegam com uma ideia errada de que aqui trabalharão menos e ganharão mais. Uma ilusão alimentada especialmente por influenciadores que mostram uma vida fácil nas redes sociais, mas que, na realidade, não reflete a dureza da jornada.

Ronaldo chegou ao país há quase 22 anos e vive com a família legalmente
Ronaldo chegou ao país há quase 22 anos e vive com a família legalmente Imagem: Arquivo Pessoal
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O mineiro relata que tem recebido mais pedidos de ajuda após a posse de Trump, inclusive de pessoas com Green Card, visto permanente para morar e trabalhar no país, que não possuem cidadania.

A sensação de medo é muito forte entre os brasileiros, especialmente aqueles que estão sem status legal. Recebo mensagens de pessoas que estão aqui há muitos anos, todas preocupadas em serem paradas nas ruas e deportadas. Muitas já construíram uma vida aqui, com casas e negócios próprios, e estão apavoradas com a possibilidade de perderem tudo. Ronaldo Felício

Também questionado sobre o preço pago pelo sonho americano, respondeu: "Se tornou uma realidade para mim, mas não sem muitas dificuldades. Valeu a pena? No meu caso, sim, mas é um caminho árduo, e a paciência é fundamental".

O que mudou?

Segundo o advogado Daniel Toledo, especializado em Direito Internacional, para quem tem visto e pretende entrar legalmente nos Estados Unidos, nada mudou, mesmo após o anúncio das medidas do governo norte-americano. No entanto, é preciso observar algumas questões.

"A pessoa que passa do tempo permitido pelo seu visto fica fora de status e se chama indocumentada. Uma das ordens executivas assinadas por Trump ampliou o expedited removal. Imigrantes não documentados em qualquer parte dos Estados Unidos, que não possam comprovar que viveram no país por dois anos desde a entrada, também estão incluídos. Antes, a medida abrangia apenas aqueles que foram detidos nos primeiros 14 dias na fronteira ou a uma distância máxima de 100 milhas."

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Brasil e Estados Unidos mantêm um acordo, desde 2018, que permite o envio de aeronaves para deportar brasileiros em situação irregular no país e já sem possibilidade de recurso, tendo em vista abreviar o tempo de permanência nas prisões norte-americanas.

No último dia 24, após a chegada de um avião com 88 brasileiros deportados, alguns algemados, em Manaus, o Itamaraty informou que "o uso indiscriminado de algemas e correntes viola os termos de acordo com os Estados Unidos, que prevê o tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados".

122 comentários

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Vivian Fiori

Lamento muito as condições de imigrantes, mas com cem mil reais poderiam começar um pequeno negócio no lugar de imigrar em condições perigosas e desumanas. 

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Luiz Gustavo Santiago Vaz

Que me perdoem... mas deviam cobrar destes ilegais deportados todo o custo incorrido pelos dois governos. Abomino o Trump e suas ideias, mas invadir o país alheio deveria ser considerado crime (tanto lá quanto cá). Aí o sujeito é detido e mandado de volta, e os dois governos é que têm que pagar a conta? Ou seja, os pagadores de impostos dos dois lados têm que bancar a aventura ilusória dos deportados. Afff...

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Luiz Antonio dos Santos

Foi entrar ilegalmente nos USA por que quis  e ninguém os obrigou, foram depoetadoe agora aguenta o choro e sem mimimimi.

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