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Refugiados sírios no Líbano vendem os próprios órgãos para sobreviver

Ulrike Putz

14/11/2013 06h00

O jovem, que se chama Raïd, não está bem. Sentindo dor, ele se sentou no assento traseiro do carro, com cuidado para não tocar nos cantos. Ele estava exausto e tonto. Havia uma grande bandagem em torno de seu estômago, manchada de sangue. Apesar disso, o sírio de 19 anos queria contar sua história.

Há sete meses, ele fugiu da cidade sitiada de Aleppo, na Síria, para o Líbano, com seus pais e seis irmãos. A família ficou rapidamente sem dinheiro na capital, Beirute. Raïd soube por meio de um parente que a solução poderia ser vender um de seus rins, e então ele falou com um homem com pescoço largo, que agora está sentado no banco do passageiro, fumando e bebendo cerveja.

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Seus conhecidos chamam o homem de Abu Hussein. Ele disse ser empregado de uma gangue que trabalha no tráfico de órgãos humanos, especializada em rins. Os negócios do grupo estão prosperando. Cerca de 1 milhão de sírios fugiram para o Líbano por causa da guerra civil em seu país natal e, agora, muitos não têm como se sustentar. Desesperados, eles vendem seus órgãos. É um negócio perigoso e, é claro, ilegal. Esse é o motivo para as gangues realizarem suas operações em clínicas secretas.

O chefe de Abu Hussein, que tem 26 anos, é conhecido nas áreas pobres como “Big Man” (o grandão). Há 15 meses, Big Man deu uma nova tarefa a Hussein: encontrar doadores de órgãos. O afluxo de refugiados sírios da guerra, argumentou o chefe de Hussein, facilitava encontrar pessoas dispostas a vender seus órgãos.

Mais vendedores do que compradores

O Líbano tem uma tradição de comércio ilegal de órgãos. O país tem pessoas muito ricas e um número imenso de pessoas que vivem na pobreza. E os traficantes de órgãos não precisam se preocupar com os controles do governo. Essas são condições ideais para o tráfico de órgãos, disse Luc Noel, especialista em transplantes da OMS (Organização Mundial da Saúde), em Genebra.

Todo ano, dezenas de milhares de árabes ricos de toda a região seguem para Beirute para tratamento nos excelentes hospitais do país. E as autoridades não prestam atenção se um paciente volta para casa com um novo nariz ou com um novo rim.

Antes, eram principalmente os palestinos carentes que vendiam seus órgãos. Então veio a guerra na Síria e depois os refugiados. Agora os grupos estão concorrendo, e os preços estão caindo.

“Quando se trata de rins, nós agora temos mais vendedores do que compradores”, diz Abu Hussein. Ele acrescenta que quatro dos outros recrutadores do Big Man intermediaram a venda de 150 rins nos últimos 12 meses. Segundo Abu Hussein, outras gangues estão se saindo igualmente bem.

Especialistas estimam que de 5.000 a 10 mil rins são transplantados ilegalmente por ano em todo mundo. “Muitos de nossos produtos vão para o exterior, para o Golfo Pérsico, por exemplo”, disse Hussein. Mas o Big Man também tem clientes nos Estados Unidos e na Europa, segundo ele.

Suficiente para mais alguns meses

Raïd não teve dificuldade em vender seu rim esquerdo porque estava em boa forma e não fumava. Ele jogava futebol nas categorias de base da Síria. Durante os exames, os médicos lhe disseram mentiras, evidentemente para tranquilizá-lo. Com um pouco de sorte, o rim voltaria a crescer, lhe disseram, e não haveria consequências posteriores. Na verdade, doadores vivos precisam passar por check-ups por anos após a operação, e pessoas como Raïd não podem pagar esse tipo de tratamento.

Ele conseguiu US$ 7 mil (cerca de R$ 16.300) pelo seu rim. “Enquanto eu levava Raïd e a mãe dele até a clínica, um colega meu saiu fazer compras com o pai”, disse Hussein. A família carecia de tudo. O pai de Raïd comprou colchonetes e roupas de inverno, uma geladeira e um fogão, e levou tudo para o único cômodo no qual a família de oito pessoas vive atualmente. Eles agora têm o suficiente para aguentar por mais alguns meses. E depois? “Eu não sei”, disse Raïd.

Abu Hussein disse que todo mundo se beneficia com o tráfico de órgãos. Os sírios conseguem dinheiro, e os doentes --que pagam até US$ 15 mil por um novo rim-- têm uma vida nova. Ele também ganha, acrescentou: ganha uma comissão de US$ 600 a US$ 700 por cada venda que arranja. Isso é quanto um professor libanês ganha por mês.

'Eu não me importo se você morrer'

Abu Hussein disse que, nos últimos meses, levou 15 ou 16 doadores de rins --todos eles sírios com idades entre 14 e 30 anos-- até a clínica secreta disfarçada de prédio residencial. A clínica conta com o equipamento médico mais moderno e não quer se limitar a rins. “Eu atualmente estou à procura de alguém que queira vender um olho.”

Posteriormente naquela noite, ficou evidente que nem todo mundo se beneficia com esse comércio. Raïd, sentado na traseira do carro, não estava se sentindo bem. Seu rim tinha sido retirado sete dias antes. “Eu preciso dos remédios. Você disse que me arrumaria os remédios”, disse ele a Abu Hussein, que poucos minutos antes se gabava de quão bem sua organização cuidava dos sírios.

Mas quando Raïd pediu pelos analgésicos, Abu Hussein gritou com ele: “Cale a boca. Eu não me importo se você morrer. Você já está liquidado”.