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Para as crianças, sírios não lutam por democracia, mas contra os alauitas

David D. Kirkpatrick

Em Zaatari (Jordânia)

05/09/2012 06h01

Como todas as crianças pequenas no campo de refugiados no deserto aqui, Ibtisam está louca para voltar para casa para os brinquedos, bicicletas, livros, desenhos e colegas de classe que deixou para trás na Síria.

Mas não se isso significar conviver com os alauitas, membros da mesma subdivisão minoritária do Islã xiita que a do presidente da Síria, Bashar Assad.

“Eu odeio os alauitas e os xiitas”, disse Ibtisam, 11 anos, enquanto uma multidão de crianças e adultos concordava com a cabeça. “Nós vamos matar todos eles com nossas facas, da mesma forma que eles mataram a gente.”

Se os combatentes que buscam derrubar Assad às vezes retratam sua batalha como uma luta pela democracia, as crianças muçulmanas sunitas do campo de Zaatari contam uma história muito mais feia de vingança sectária. Quando é perguntado a elas como elas veem a batalha dos adultos que as expulsou de suas casas, uma criança após a outra expressou seu ódio pelos alauitas e uma sede de vingança. Crianças com apenas 10 ou 11 anos prometeram nunca brincar com crianças alauitas sírias ou até mesmo prometeram matá-las.

Repetindo seus parentes mais velhos –sendo que alguns até mesmo as incitavam– as crianças ofereceram um prenúncio perturbador do que a Síria pode esperar pela frente.

O ódio sem verniz delas ajuda a explicar por que tantos alauitas, que correspondem a mais de 10% da população síria, permaneceram ao lado de Assad mesmo após o mundo tê-lo condenado. A recusa das crianças em compartilhar um playground ou sala de aula com os alauitas dramatiza o desafio para se chegar a uma solução política para o conflito. E o modo fácil como crianças tão jovens falavam de sangue e morte ilustra o preço psíquico que a revolta e repressão está tendo sobre a próxima geração de sírios.

“Nós ouvimos o tempo todo das crianças, mas também dos pais –que isso não tem nada de político, que não se trata de um pedido por democracia, mas sim de pessoas cheias e furiosas com o governo de uma minoria, os alauitas”, disse Saba al Mobaslat, diretora para Jordânia do grupo sem fins lucrativos Save the Children, que fornece brinquedos para crianças refugiadas e tenta ensinar entendimento para elas. “Há a preocupação de que toda essa geração esteja sendo criada para odiar, que não consiga ver o outro lado.”

As raízes da animosidade em relação aos alauitas por membros da maioria muçulmana sunita da Síria, que compõe cerca de 75% da população, são profundas na história. Durante o Império Otomano do século 19, os grupos viviam em comunidades separadas e a maioria sunita marginalizava tanto os alauitas que eles nem mesmo eram autorizados a testemunhar em um tribunal até depois da Primeira Guerra Mundial.

Então, em um padrão repetido por toda a região, disse Joshua Landis, um especialista em Síria da Universidade de Oklahoma, os colonizadores franceses colaboraram com a minoria alauita para controlar a população síria conquistada –como os colonizadores fizeram com os cristãos no Líbano, com os judeus na Palestina e com os muçulmanos sunitas no Iraque. Os franceses colocaram os alauitas no exército da colônia para ajudar a controlar os sunitas. E depois da independência da Síria da França, os militares acabaram assumindo o controle do país, colocando os alauitas nos cargos mais altos do governo, para ressentimento da maioria sunita.

“Agora os alauitas acreditam –possivelmente de modo acertado– que os sunitas vão tentar matá-los, e esse é o motivo para o exército alauita agora estar matando sunitas dessa forma bestial”, disse Landis. “Os alauitas sentem que sua brutalidade é justificada, porque temem o que pode estar reservado para eles caso baixem suas armas.”

“Eu não vejo nenhuma saída para isso”, ele disse, “exceto dizer que será uma jornada longa e difícil e que rezemos para que os sírios consigam superar isso de alguma forma”.

No campo em Zaatari, uma cidade de tendas desolada onde quase metade dos 25 mil moradores tem menos de 12 anos e está desesperadamente entediada, muitas das crianças mantêm uma inocência desarmadora.

“Quem vai governar a Síria? Outro presidente, mas nós é que vamos escolher”, disse Rahaf, 11 anos, de modo confiante. “Eu não sei quem, porque ainda não vimos os nomes.”

Assim como o levante sírio começou como um movimento de protesto pacífico inspirado pelos pedidos por democracia por todo o mundo árabe, algumas crianças no campo Zaatari buscaram descrever a luta em termos ideológicos.

“Por que estão bombardeando a gente?” perguntou Ahmed, 12 anos, da região de Hauran, perto da fronteira com a Jordânia. “Porque estamos pedindo por nossa liberdade.”

Seu pai interrompeu para explicar o que liberdade significaria.

“Mesmo se você for o maior general em Hauran, um jovem soldado alauita pode pisar na cabeça do general”, disse seu pai. “Um jovem soldado alauita pode humilhar o mais alto oficial.”

Seu filho deu continuidade ao tema.

“Os alauitas dizem: ‘Se ajoelhe diante do meu sapato’”, disse Ahmed, antes de reassociar o tema à revolta. “Nós não podemos ser livres com Assad, porque ele nos mata.”

As convicções de Heza, 13 anos, eram duras.

“Nós nunca viveremos juntos”, ele disse. “Todos os alauitas são agentes de segurança. Depois da revolução, nós vamos matá-los.”

Mesmo que signifique matar uma criança síria de sua mesma idade?

“Eu vou matá-lo”, disse Heza. “Não importa.”

Mobaslat, da Save the Children, disse que os trabalhadores de ajuda de seu grupo evitam tratar diretamente dos sentimentos sectários, porque tentam não iniciar conversas que não têm como resolver. Ela também disse acreditar que algumas crianças no campo são alauitas, xiitas ou de outras minorias, fingindo ser muçulmanas sunitas para sua própria segurança, de modo que levantar o assunto em um grupo poderia criar problemas.

Ela disse que os trabalhadores de seu grupo tentam conversar com as crianças sobre aceitarem umas às outras, tomarem suas próprias decisões e a decidirem por si mesmas em quem confiar, odiar ou amar. A meta é encorajar as crianças a verem umas às outras como indivíduos, em vez de parte de um grupo, ela disse, “mas isso não acontece da noite para o dia, apenas por causa de um levante”.

“Os sunitas são muçulmanos e os xiitas e alauitas são aqueles que nos matam”, explicou Salem, 12 anos.

Ranya, 13 anos, insistiu que “sempre haverá um problema entre sunitas e alauitas, porque são eles que estão fazendo isso conosco”.

Ela odeia os alauitas, ela disse, mas não exclusivamente: ela também odeia Hassan Nasrallah –o líder do Hizbollah, a milícia xiita libanesa apoiada pelo Irã, que apoia o governo Assad– assim como a China e a Rússia, os outros apoiadores estrangeiros de Assad.

A poucos metros de distância, uma mãe de 41 anos estava embalando nos braços sua filha de 2 anos, Malek, para que o bebê pudesse cantar para o visitante na tenda da família: “Paraíso, paraíso, paraíso, a Síria é o paraíso”.

(Ranya Kadri contribuiu com reportagem.)