Do 'boom' ao fracasso, grandes projetos definham no Brasil
O Brasil enterrou bilhões de dólares na construção de uma ferrovia que iria cruzar todo sertão nordestino, mas o projeto, que há muito vinha sendo adiado, se tornou vítima de catadores de sucata. Novos e curvilíneos edifícios públicos projetados pelo famoso arquiteto Oscar Niemeyer foram abandonados logo após serem construídos. Houve até um malfadado museu dos ETs, que foi construído com recursos federais. O que sobrou da estrutura do edifício hoje mais se parece com uma nave perdida em meio a ervas daninhas.
Enquanto o Brasil corre para se preparar a tempo para a Copa do Mundo, que acontecerá no próximo mês de junho, o país se depara com uma série de atrasos, alguns deles causados por acidentes fatais nas obras dos estádios e por gastos excessivos. O país também está construindo sistemas ferroviários e de ônibus para atender os torcedores, mas muitos desses projetos só serão concluídos muito tempo depois do fim dos jogos.
No entanto, os projetos relacionados à Copa do Mundo são apenas parte de um problema nacional maior e que tem lançado uma cortina de fumaça sobre as grandes ambições do Brasil: uma série de projetos luxuosos concebidos quando o crescimento econômico se encontrava em alta, mas que agora estão abandonados ou foram paralisados ou cujos orçamentos descontrolados estão muito acima do previsto.
Esses empreendimentos se destinavam a ajudar a impulsionar e a simbolizar a ascensão aparentemente inexorável do Brasil. Mas agora que o país vem avançando com dificuldade em meio à ressaca pós-boom, essas obras estão expondo os governantes da nação a críticas fulminantes e alimentando acusações relacionadas a gastos desnecessários e à incompetência generalizada, enquanto a qualidade dos serviços básicos para atender milhões de pessoas se mantem sofrível. Alguns economistas dizem que os problemas detectados nesses projetos expõem a burocracia paralisante, a alocação irresponsável de recursos e os bastiões de corrupção que existem no país.
Os grandes protestos de rua observados nos últimos tempos destinavam-se a criticar os novos e caros estádios que estão sendo construídos em cidades como Manaus e Brasília, onde o pequeno número de partidas de futebol e o número reduzido de torcedores muito provavelmente deixará um mar de cadeiras vazias depois que os jogos da Copa do Mundo terminarem, aumentando as preocupações de que uma quantidade ainda maior de elefantes branco surgirá após o torneio.
“Os fiascos estão se multiplicando, revelando uma bagunça que é lamentavelmente sistêmica”, disse Gil Castello Branco, diretor do Contas Abertas, grupo brasileiro de monitoramento que analisa os orçamentos públicos. “Nós estamos acordando para a realidade de que imensos recursos foram desperdiçados em projetos extravagantes, num momento em que nossas escolas públicas ainda estão uma bagunça e que ainda temos esgoto sem tratamento em nossas ruas”.
A crescente lista de projetos de desenvolvimento que têm apresentado problemas inclui uma rede de canais de concreto no valor de US$ 3,4 bilhões, localizada na seca região nordestina e que deveria ser concluída em 2010, além de dezenas de novos parques eólicos que não estão em funcionamento devido à falta de linhas de transmissão e de hotéis de luxo inacabados que poluem o horizonte de Rio de Janeiro.
Economistas entrevistados pelo Banco Central do Brasil disseram que a economia do país deverá crescer apenas 1,63% este ano, percentual inferior aos 7,5% de 2010, desempenho que transformará 2014 no quarto ano consecutivo de crescimento lento. Apesar de uma crise econômica ainda parecer uma possibilidade remota para o Brasil, os investidores estão cada vez mais pessimistas em relação ao país. A agência de classificação de crédito Standard & Poor’s reduziu a nota do Brasil no mês passado após afirmar que espera que o crescimento lento persista durante vários anos.
Para dificultar ainda mais as coisas para o governo, 2014 é ano eleitoral e uma pesquisa divulgada no mês passado mostrou que o apoio ao governo da presidente Dilma Rousseff caiu de 43% para 36% em novembro do ano passado, num momento em que a desaceleração da economia persistia.
Os partidários de Dilma afirmam que os gastos públicos funcionaram muito bem, pois ajudaram a manter o desemprego em níveis historicamente baixos e a prevenir o que teria sido uma desaceleração econômica muito pior se o governo não tivesse bombeado recursos consideráveis para a ampliação da infraestrutura do país.
Luiz Inácio Lula da Silva, mentor político de Dilma e antecessor dela na presidência, foi o impulsionador de muitos dos onerosos projetos de infraestrutura durante seus dois mandatos, entre 2003 a 2010. Em entrevista recente, Lula reconheceu que alguns dos empreendimentos estão enfrentando longos atrasos. Mas ele também afirmou que, antes de assumir a presidência, em 2003, o Brasil havia ficado várias décadas sem investir em projetos de obras públicas e que, por isso, o país teve que basicamente começar do zero.
“Nós ficamos sem realizar nem desenvolver nenhum projeto de infraestrutura pública durante 20 anos”, disse da Silva. “Nós não tínhamos nenhum projeto na gaveta”.
Ainda assim, um coro crescente de críticos argumenta que a incapacidade de concluir grandes projetos de infraestrutura revela deficiências no modelo de capitalismo de estado do Brasil.
Primeiro, segundo esses críticos, o Brasil permite que vários bancos, fundos de pensão e empresas estatais exerçam uma extraordinária influência no país e invistam em projetos de qualidade duvidosa. Além disso, também há outros bastiões da gigantesca burocracia pública que paralisam os projetos do governo com auditorias e ações judiciais.
“Alguns empreendimentos nem mereciam receber dinheiro público”, disse Sérgio Lazzarini, economista do Insper, faculdade de administração de São Paulo, fazendo referência aos milhões de reais em financiamento estatal destinados à reforma do Hotel Glória, no Rio de Janeiro, que até recentemente pertencia ao magnata da mineração Eike Batista. As obras de renovação do hotel foram paralisadas quando o império empresarial de Batista desmoronou no ano passado e o prédio não ficará pronto a tempo para a Copa do Mundo.
“No caso dos projetos de infraestrutura que mereciam o apoio estatal e que foram capazes de obtê-lo”, continuou Lazzarini, “há a difícil tarefa de lidar com os riscos que o próprio governo cria”.
A Transnordestina, uma ferrovia cujas obras foram iniciadas em 2006 no nordeste do Brasil, ilustra algumas das armadilhas que assolam os projetos de grande e pequeno porte do país. Prevista para ser concluída em 2010 a um custo de aproximadamente US$ 1,8 bilhão, a estrada de ferro, que deverá ter mais de 1.600 km de extensão, agora deverá custar pelo menos US$ 3,2 bilhões, e a maior parte do financiamento virá de bancos estatais. Autoridades dizem que a ferrovia deve ser concluída por volta de 2016.
Mas após o abandono das obras devido a auditorias e outros contratempos registrados meses atrás na cidade de Paulistana – no Piauí, um dos estados mais pobres do Brasil – e em seus arredores, até mesmo esse cronograma parece otimista demais. Longos trechos da ferrovia, onde trens de carga já deveriam estar circulando, continuam desertos. Atualmente, vaqueiros de aparência rija e magra cuidam de rebanhos bovinos à sombra de pontes ferroviárias fantasmagóricas que se erguem 45 metros pés acima vales ressequidos.
“Os ladrões estão saqueando o metal dos canteiros de obras”, disse Adailton Vieira da Silva, 42, eletricista que trabalhou com milhares de outros funcionários antes de as obras terem sido paralisadas no ano passado. “Agora existem apenas essas pontes que ficaram no meio do nada”.
César Borges, ministro dos Transportes do Brasil, expressou irritação com os atrasos na finalização da ferrovia, que é necessária para o transporte de safras de soja para os portos. Ele listou as burocracias que atrasam projetos como a Transnordestina: o Tribunal de Contas da União; o Gabinete da Controladoria-Geral; uma agência de proteção ambiental; um instituto de proteção do patrimônio arqueológico; agências que protegem os direitos dos povos indígenas e dos descendentes de escravos fugidos; e o Ministério Público, um corpo de promotores independentes.
Ainda assim, Borges insiste que “projetos sofrem atrasos em todos os países do mundo, não apenas no Brasil”.
Lula, que supervisionou o início das obras da Transnordestina há oito anos, foi franco sobre o papel de seu Partido dos Trabalhadores, que já foi oposição no Congresso Nacional, na criação de tais atrasos. “Nós criamos uma máquina, uma máquina de fiscalização, que é a maior máquina de supervisão de todo o mundo”, disse ele, explicando como seu partido ajudou a criar um sistema labiríntico de auditorias e controles ambientais antes de ele e Dilma serem eleitos.
“Quando você está na oposição, você tenta criar dificuldades para aqueles que estão no governo”, disse da Silva. “Mas nós nos esquecemos de que, provavelmente, um dia nós assumiríamos o governo”.
Alguns economistas afirmam que a maneira como o Brasil está investindo pode estar dificultando o crescimento do país, em vez de respaldá-lo. As autoridades locais incentivaram as empresas de energia elétrica a construir parques eólicos, mas dezenas desses parques não podem operar porque faltam linhas de transmissão para conectar a rede elétrica. Enquanto isso, o setor industrial se preocupa com um provável racionamento de energia elétrica num momento em que os reservatórios das hidrelétricas secam devido à seca.
Outras obras públicas também se encontram ociosas. Autoridades da cidade de Natal gastaram milhões de reais em prédios cheios de ondulações projetados por Niemeyer, que foram inaugurados em 2006 e 2008. Mas as instalações foram abandonadas quase que imediatamente após sua inauguração, permitindo que posseiros ocupassem algumas áreas. Atualmente, as autoridades dizem que têm planos para reformar os edifícios. Outro projeto de Niemeyer, a torre de TV de Brasília, que custou US$ 30 milhões e foi projetada à imagem de uma flor futurista, permanece sem utilização dois anos após sua inauguração.
E há ainda o museu dos ETs localizado em Varginha, cidade mineira onde os moradores afirmam ter visto um extraterrestre em 1996. As autoridades garantiram verbas federais para a construção do museu, mas agora tudo o que resta do projeto inacabado é a carcaça enferrujada do que se parece com um disco voador.
“Esse museu”, disse Roberto Macedo, economista da Universidade de São Paulo, “é um insulto tanto aos extraterrestres quanto aos seres terrestres como nós, que pagaram a conta de mais um projeto que não foi entregue”.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.