Após casos de violência, adultos reclusos enfrentam estigma maior no Japão
Depois do ataque a faca contra 17 meninas estudantes e dois adultos em um ponto de ônibus em Kawasaki, perto de Tóquio, na semana passada, o público, chocado, procura respostas sobre o que pode ter levado alguém a cometer um ato tão terrível.
O agressor se matou após o ataque, que deixou mais dois mortos. Investigadores e a mídia se concentraram no fato de que o homem vivia em total reclusão, um "hikikomori", como são chamadas aqui as pessoas nessa situação.
Depois houve outro crime terrível no fim de semana: um ex-membro graduado do governo, aposentado, matou a facadas seu filho de 44 anos, que morava com os pais e não tinha outros contatos sociais. Ao que parece, o pai, de 76 anos, tinha medo de que o filho, que havia abusado fisicamente da mãe, atacasse outras pessoas, citando especificamente os crimes em Kawasaki, perto de Tóquio.
Mesmo antes desses espasmos de violência, as centenas de milhares de hikikomori japoneses enfrentavam um estigma, pois o país conserva um forte tabu contra admitir doenças mentais. Agora, psiquiatras e defensores temem que uma nova onda de medo leve os hikikomori a ser ainda mais perseguidos, falsamente vistos como pessoas inclinadas a praticar crimes hediondos.
Enquanto há reclusos extremos em outros países, especialistas dizem que a condição talvez seja mais pronunciada no Japão, cuja cultura valoriza a conformidade social, levando os que não se enquadram na norma a esconder-se.
Os hikikomori geralmente são definidos como adultos que se escondem na casa dos pais ou de parentes durante seis meses ou mais, muitas vezes confinados em um quarto. Eles não trabalham e raramente se envolvem com o mundo exterior, em muitos casos ocupando os dias com televisão, internet e videogames. Eles não podem manter relacionamentos significativos, muitas vezes nem mesmo com os pais que cuidam deles física e financeiramente. Alguns vivem nessa situação durante anos ou décadas.
Segundo uma pesquisa do governo divulgada em março, há quase 1,2 milhão de pessoas identificadas como hikikomori, aproximadamente um em cada quatro japoneses entre 15 e 64 anos. Mas especialistas dizem que o número provavelmente subestima o alcance real do problema.
No caso de Kawasaki, autoridades de saúde mental disseram a repórteres que o responsável pelo ataque, Ryuichi Iwasaki, 51, era um hikikomori que não trabalhava "havia muito tempo". Ele morava com uma tia e um tio que, segundo autoridades, "não queriam irritá-lo muito".
Já houve outros crimes violentos envolvendo hikikomori, em que eles mataram parentes, ou pais mataram filhos adultos que viviam como reclusos havia anos, mas a correlação ainda é rara.
"Nos últimos 20 anos, o número de hikikomori que cometeram crimes violentos é pequeno, "não mais de dez casos, certamente", disse Tamaki Saito, psiquiatra da Universidade de Tsukuba, a cerca de uma hora a nordeste de Tóquio, que é um renomado especialista em hikikomori. "Se compararmos isso com a população em geral, acho que é justo concluir que os hikikomori não têm relação com crimes. São um grupo com baixo índice de criminalidade."
Embora alguns estudos sugiram que os hikikomori cometem atos de violência doméstica em números maiores que a população em geral, segundo especialistas o problema mais premente é que os que têm essa condição, como outros no Japão, raramente buscam ajuda para seus problemas de saúde mental. Os hikikomori podem ser afetados por esquizofrenia, depressão ou ansiedade, ou podem estar no espectro autista.
"O âmbito do problema não são coisas como um ataque a faca cometido por alguém que é hikikomori", disse Alan Teo, professor associado de psiquiatria na Universidade de Ciência e Saúde do Oregon, em Portland, que pesquisou a reclusão social no Japão. "Mas o âmbito do problema é mais em termos de centenas de milhares de indivíduos que estão nesse estado prolongado de reclusão sem participação ativa em tratamento de saúde mental."
Famílias envergonhadas e mães preocupadas
As famílias geralmente sentem vergonha de dizer a alguém que seu filho tem dificuldades.
"Os pais não revelam a situação dos filhos à sociedade como um todo", disse Tomiko Kushihashi, que dirige uma filial local na Prefeitura de Hyogo, a oeste de Kyoto, da Kazoku Hikikomori Japan, grupo de apoio a famílias de reclusos. "Toda a família é isolada da sociedade sem pedir ajuda."
Uma crise iminente, segundo especialistas, é que grande número de hikikomori está envelhecendo, com poucos indícios de que um dia poderão se reintegrar à sociedade. Seus pais, ao envelhecer, preocupam-se com quem irá cuidar desses adultos retraídos.
Segundo a pesquisa do governo, cerca de 613 mil pessoas entre 40 e 64 anos são identificadas como hikikomori, superando os 540 mil entre 15 e 39 anos. A vasta maioria deles é formada por homens.
Takahiro Kato, psiquiatra na Universidade Kyushu que pesquisa hikikomori e dá consultas a famílias, disse que muitas vezes foi procurado por pais idosos, na maioria mães, que perguntam como podem continuar sustentando seus filhos adultos. "Se eu morrer, o que ele deve fazer?", costumam perguntar as mães, segundo ele.
Defensores cunharam a expressão "8050" para se referir ao problema demográfico do número crescente de hikikomori que chegam aos 50 anos, enquanto seus pais chegam aos 80.
Os psiquiatras ainda não sabem exatamente o que leva um indivíduo a se retirar para um estado de reclusão radical. Alguns dizem que pessoas vulneráveis podem ter sofrido bullying na adolescência, ou não aprenderam a enfrentar a raiva ou as tensões da via cotidiana.
Kato disse que o sistema educacional do Japão, que enfatiza a vergonha em sua busca por conformidade e pode minar a confiança pessoal, talvez estimule as tendências reclusivas.
"Nos Estados Unidos, uma criança é encorajada a fazer coisas, e a autoestima é alta", disse ele. "Na cultura e no sistema educacional japoneses, as crianças não são incentivadas a desenvolver a autoestima."
A influência da bolha imobiliária
Outros pesquisadores apontam fatores econômicos. Os hikikomori começaram a aparecer em grande número depois que a bolha imobiliária no país explodiu nos anos 1990 e muita gente perdeu o emprego.
Mesmo hoje que o desemprego está baixo, alguns reclusos podem não querer participar da rígida e hierárquica cultura do trabalho, onde os empregados devem trabalhar muitas horas e as promoções são geralmente baseadas na idade, mais que no desempenho.
Na imaginação do público, as mães que mimam seus filhos às vezes são culpadas, enquanto outros apontam o dedo para o vício em videogames ou a obsessão por histórias em quadrinhos conhecidas como mangá.
Alguns pesquisadores dizem que o fenômeno é predominante no Japão porque o núcleo familiar ainda é muito importante na sociedade, e os pais relutam em expulsar os filhos de casa.
"Por causa da forma como funciona o bem-estar social no Japão, é difícil para os pais não assumir essas responsabilidades", disse Sachiko Horiguchi, antropóloga na Universidade Temple em Tóquio.
Manter tudo escondido dentro de casa pode criar um círculo vicioso em que os hikikomori e seus familiares se sentem presos.
"Com o forte valor japonês de assumir a responsabilidade por seus atos, as questões familiares devem ser resolvidas dentro da família", disse Natsue Onda, codiretora da Hikikomori UX Kaigi, grupo de antigos e atuais hikikomori.
Muitos governos municipais oferecem centros de apoio a famílias de hikikomori, mas eles são operados por pessoas não especializadas. A prioridade é ajudar a tirar os hikikomori de seus quartos e levá-los de volta ao trabalho, solução que às vezes deixa de abordar questões psicológicas.
Quanto mais os hikikomori são demonizados, ou pelo menos classificados como deficientes ou estranhos, mais difícil é para eles ser aceitos na sociedade ou conseguir um emprego.
Serviços particulares foram criados para ajudar as famílias, mas podem custar milhares de dólares e não precisam oferecer tratamento psiquiátrico qualificado.
Um desses serviços é o ReSTART, empresa de Tóquio que leva hikikomori da casa dos pais para dormitórios.
"É mais fácil falar que fazer", disse Shigeru Kusano, ex-agente imobiliário que dirige a empresa. "Mas para falar francamente qualquer pessoa com vontade de ajudar os outros e compaixão pode fazer este trabalho."
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