Topo

Opinião: Coronavírus, desigualdade e indiferença

13.abr.2020 - Com foco de covid-19, Duque de Caxias (RJ) tem fila de 8 horas em UPA e comércio aberto - Herculano Barreto Filho/UOL
13.abr.2020 - Com foco de covid-19, Duque de Caxias (RJ) tem fila de 8 horas em UPA e comércio aberto Imagem: Herculano Barreto Filho/UOL

Prof. Dr. Daniel Péricles Arruda

Colaboração para o UOL

27/04/2020 14h43

A finalidade deste texto é apresentar algumas informações e indagações para embasar uma reflexão sobre a atual pandemia do coronavírus. A intenção não é esgotar o tema e nem propor respostas para a atual situação — não conseguiria fazê-los —, mas apontar algumas pistas para o diálogo, considerando, inclusive, o momento e o local em que este texto é elaborado, pois escrevo do Brasil e olhando para o que acontece em outros países, durante o atravessamento de um momento pandêmico. Muitos fatos ainda vão surgir, até a sua publicação, bem como depois, mas não invalidam esta contribuição.

Antes da pandemia do coronavírus, a humanidade teve que lidar com várias outras, como foi o caso, por exemplo, da que ocorreu entre 1347 e 1351, em decorrência de uma infecção causada pela bactéria Yersinia Pestis, que se disseminou por meio de pulgas e ratos contaminados. Conhecida como Peste Bubônica, Grande Peste ou Peste, estima-se que tenha exterminado entre um terço e metade da população europeia.

No século 20, precisamente em 1918, o vírus Influenza matou aproximadamente 50 milhões de pessoas, em todo o mundo. Na época, a gripe recebeu diferentes denominações, nos vários países que atingiu, e ficou também conhecida como Gripe Espanhola. Embora não tenha surgido em território espanhol, acredita-se que recebeu esse nome porque a Espanha, que não participou da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), manteve suas atividades de imprensa ativas e com condições para transmitir informações a respeito da gripe que, logo, ficou conhecida por esse nome. Porém, há controversas sobre sua origem. Há indicações e/ou evidências de que teria surgido nos Estados Unidos da América (EUA), (CROSBY, 1989).

Observa-se que é um desafio descobrir a origem e o modo de transmissão de um vírus, porém, é importante considerar algumas informações para construir formas de combatê-lo, como o desenvolvimento e a distribuição de vacinas. Dado sensível e importante é que a nomeação de um vírus, ou pandemia, a partir de nomes de países, territórios, ou de características étnico-raciais, podem causar preconceitos e estimular processos de estigmatização. Portanto, tal prática deve ser evitada.

A pandemia mais recente, ocorrida no século 21, de abril de 2009 a agosto de 2010, foi a gripe suína (H1N1), que, segundo dados oficiais, teria vitimado em torno de 18,5 mil pessoas. Entretanto, Dawood et al. (2012) estimam que, somente nos 12 primeiros meses de circulação do vírus, o número de mortos pode ter sido até 15 vezes maior do que o total divulgado.

Na atualidade, o mundo é tomado por outra pandemia, provocada pelo coronavírus, o nome da família do vírus. A partir de suas diferenças e mutações observadas, são provocadas a Síndrome Respiratória Aguda Grave/Severe Acute Respiratory Syndrome (Sars), que surgiu na China em 2002, e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio/Middle East Respiratory Syndrome (Mers), ocorrida no Oriente Médio, em 2012. Já o novo coronavírus, tem o nome oficial de Síndrome Respiratória Aguda Grave do Coronavírus 2/Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (Sars-Cov-2). E Coronavirus Disease 2019 (Covid-19), que é o nome oficial da doença causada pelo vírus.

O primeiro registro, no final de 2019, ocorreu em Wuhan, cidade com 11 milhões de habitantes, que é capital da província de Hubei, situada na China. Cientistas especulam que uma das prováveis fontes de contaminação do coronavírus tenha acontecido em um mercado de animais em Wuhan. Esse mercado comercializa, inclusive, o pangolim (animal mamífero), possível intermediário entre o morcego e o ser humano que teria contribuído para a transmissão do vírus.

Em consulta realizada no dia 24 de abril de 2020, o Mapa do Coronavírus (Covid-19) - que atualiza os dados em tempo real -, traz que já foram contaminadas, em todo o mundo, 2.790.986 pessoas, com 781.382 recuperadas e 195.920 mortes. Na ordem, os países com mais infectados no momento são: EUA, Espanha, Itália, Alemanha, Reino Unido, França, Turquia, Irã, China, e Rússia. Acredita-se que os dados não refletem exatamente a realidade, pois, em muitos países, não há número suficiente de profissionais, bem como de materiais necessários para realizar a testagem e a análise apurada da relação entre os sintomas e a causa da morte.

Essas informações preliminares são relevantes para se pensar o impacto do coronavírus na vida como um todo. É possível identificar que o debate sobre a pandemia não envolve somente a área da saúde e o campo científico, mas também os interesses e as disputas na política e na economia (AGAMBEN et al., 2020).

Certo é que o momento é grave, delicado, incerto, pois se trata de um vírus que se alastra rapidamente e ainda não há vacina para combatê-lo diretamente. Entretanto, no Brasil e nos EUA, especula-se sobre o uso da cloroquina, ou hidroxicloroquina - medicamento indicado para o tratamento de artrite, malária e lúpus -, que vem sendo defendido, pelos presidentes dos respectivos países, como caminho para o tratamento do Covid-19. A questão é polêmica, pois não há base científica que comprove, até o momento, tal convicção.

As pandemias começam restritas e passam por níveis de aceleração e crescimento, como se fossem uma bola de neve, que, durante o movimento de rolagem, ganha força até se tornar uma imensa avalanche.

É importante recordar que o médico oftalmologista chinês, Li Wenliang, tentou alertar outros médicos sobre um possível início do surto, mas foi ignorado e, até mesmo, intimado pela polícia e teve que assinar um termo de reprimenda por perturbação da ordem social. O médico contaminou-se e faleceu aos 34 anos de idade, devido ao Covid-19.

Acredita-se que, quanto mais rapidamente se percebe o surgimento de uma pandemia e quanto mais eficientes e eficazes forem as ações de Estado, menos danos sofrerá a humanidade, como é o caso de Portugal que, além da questão geográfica, antecipou suas ações de prevenção e controle. Na contemporaneidade, mesmo com todos os recursos científicos e tecnológicos, as pandemias têm ido além, pois representam algo novo para a humanidade, contêm efeitos devastadores, pois revelam e potencializam as desigualdades:

O surto expôs instantaneamente a divisão de classes na saúde americana. Aqueles com bons planos de saúde que também podem trabalhar ou ensinar de casa estão confortavelmente isolados, desde que sigam salvaguardas prudentes. Os funcionários públicos e outros grupos de trabalhadores sindicalizados com cobertura decente terão de fazer escolhas difíceis entre renda e proteção. Enquanto isso, milhões de trabalhadores com baixos salários, trabalhadores rurais, desempregados e sem teto estão sendo jogados aos lobos.
(DAVIS et al., 2020, p. 9).

No começo da pandemia, alguns políticos ignoraram inicialmente a recomendação de isolamento social e acabaram por expor as pessoas à contaminação, como o prefeito de Milão/Itália, Giuseppe Sala, que defendeu a ideia de ser desnecessário ficar em casa, apoiando, inclusive, a campanha Milão Não Para. Na Suécia, o primeiro-ministro, Stefan Löfven, reconheceu que as medidas tomadas não foram suficientes, pois, ao contrário dos países vizinhos, não adotou medidas mais severas de isolamento social. O presidente dos EUA, Donald Trump, no começo da pandemia, comparou a doença a uma "gripe comum". E o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, referiu-se ao Covid-19 como "uma gripezinha ou resfriadinho". Porém, atualmente, o Brasil já registrava, até o fechamento deste texto, 5.995 casos confirmados, 26.573 recuperados e 3.670 mortes, com previsão de que esses números aumentem, devido ao processo de evolução do vírus.

O gráfico abaixo mostra os números mais atuais:

Algumas pessoas podem ter contraído o vírus, mas por não desenvolverem os sintomas da doença, não sabem que estão infectadas, inclusive, mesmo assintomáticas, correm o risco de contaminar outras pessoas. Porém, de outro lado, muitos estão lutando contra a morte, nos hospitais. No começo da pandemia, o fato de informar que o vírus tinha como público-alvo pessoas idosas, pode ter proporcionado a sensação de que crianças e jovens não precisariam se cuidar. Entretanto, após os registros de contaminação e óbito em pacientes jovens, percebeu-se o engano. Quer dizer, a pandemia tem a humanidade como foco, mas não atinge a todos da mesma forma, pois depende de condições, ações e respostas de ordens biológica, política, econômica, cultural e subjetiva.

Nos EUA, o coronavírus tem vitimado, de modo desproporcional, a população negra, que vem apresentando índices de óbito e contaminação mais elevados do que entre as pessoas brancas. Não há, naquele país, um sistema público de saúde, e muitos evitam ir ao médico, em razão dos altos custos. Já no Brasil, há o Sistema Único de Saúde (SUS) de acesso integral, universal, igualitário e gratuito, o que não significa que está tudo sob controle, pois nos últimos anos esse sistema vem passando por processos de precarização, sucateamento, e de adoecimento e desvalorização de seus profissionais. Sobre o aspecto étnico-racial, o coronavírus é mais letal também entre as pessoas negras. Como a transmissão não depende de aspectos relacionados à raça/cor, abre-se o debate sobre as desigualdades sociais e raciais, que são estruturais, nesses dois países, bem como para o modo como a saúde é tratada, tanto na rede pública quanto na particular.

No Brasil, a população total é de aproximadamente 211 milhões de habitantes (segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE), e 13,6 milhões moram em favelas (segundo os institutos Data Favela e Locomotiva). Muitas dessas regiões são negligenciadas pelo poder público, por esse motivo, seus moradores e trabalhadores vivenciam inúmeras situações, por exemplo, a precariedade do saneamento básico. Em relação ao trabalho/renda, muitos estão desempregados, inclusive, devido à pandemia, várias pessoas foram dispensadas de seus postos; outras continuam trabalhando informalmente; e/ou permanecem trabalhando sem condições de proteção, ou seja, submetem-se a enormes deslocamentos de casa ao local de trabalho, acabam por dormir pouco, alimentar-se de maneira inadequada, logo, podem desenvolver outras doenças que as tornam mais vulneráveis ao coronavírus. Não é uma generalização, mas aspectos que devem ser observados. No Brasil, portanto, é preciso ver a situação para além do aspecto etário, e considerar outras áreas: social, racial e de gênero. Desse modo, é necessário um contexto que seja mais favorável à apreensão e leitura crítica desses dados e indicações.

As pandemias, por um lado, fomentam a criação de redes de solidariedade, proteção, cuidado e criatividade. Por outro lado, são mais mortais do que as guerras, porque, geralmente, podem alterar modos de vida; provocar mudanças na sociabilidade e nos comportamentos, e causar impactos culturais, psíquicos e psicológicos; afetar as relações étnico-raciais e de gênero; fomentar e produzir outras violências. São capazes de deixar vidas sem sentido e corpos ao relento, como é o caso do Equador, onde algumas pessoas mortalmente vitimadas pelo vírus, tiveram seus corpos abandonados em suas casas e nas ruas, muitos já em estado de decomposição, devido à falta de recursos para o sepultamento.

Ainda, destroem dignidades; atravessam processos de subjetivação; intensificam desigualdades sociais. Não escolhem classe social, mas atingem de maneira intensa as regiões periféricas e as pessoas mais pobres; e tornam outras ainda mais vulneráveis. Apresentam ao mundo a nossa indiferença no reconhecimento do próximo; do modo como lidamos com o desconhecido; mostram o nosso limite; e podem até alcançar algumas bases das estruturas das sociedades capitalistas, mesmo considerando que nesse momento difícil e doloroso da história, há os que lucram com o superfaturamento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), alimentos, do gás de cozinha, entre outros insumos essenciais.

É um pouco mais fácil fazer recomendações para quem, materialmente, pode segui-las, como solicitar ou obrigar que pessoas fiquem em casa e que não façam aglomerações. Mas tais recomendações deixam dúvidas: Como pedir para que fiquem em casa, se não têm moradia? Ou não possuem meios adequados para se proteger? Como falar para não fazer aglomerações, para quem vive em aglomerados? Como falar de isolamento, para quem vive socialmente isolado? Como falar de isolamento social, para quem é acometido negativamente pela desigualdade social?

Essas são algumas questões para refletir sobre a atual pandemia e sua relação com as desigualdades e as indiferenças que se acentuaram e as que emergem com a expansão do coronavírus pelo mundo, como o descaso político, que produz ainda mais invisibilidade de determinados sujeitos, bem como a desconsideração das condições de vida de muitos, que são deixados à sua própria sorte ou morte. O nascimento de um outro mundo, portanto, não significa que quem sobreviver viverá melhor.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio et al. Sopa de Wuhan: pensamiento contemporáneo en tiempo de pandemias. Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio (Aspo), 2020.
  • CROSBY, Alfred W. America's forgotten pandemic: the influenza of 1918. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
  • DAVIS, Mike et al. Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.
  • DAWOOD, Fatimah S. et al. Estimated global mortality associated with the first 12 months of 2009 pandemic influenza A H1N1 virus circulation: a modelling study. The Lancet Infectious Diseases. Volume 12, Issue 9, p. 687-695, September 01, 2012. Published in: June 26, 2012. Doi: 10.1016/S1473-3099(12)70121-4.