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Assassinato de jovem congolês destrói imagem de país cordial e hospitaleiro

O jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe - Reprodução/Facebook
O jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe Imagem: Reprodução/Facebook

Na última segunda-feira, o jovem imigrante congolês Moïse Kabamgabe, de 24 anos, foi brutalmente assassinado no Rio de Janeiro. Moïse chegou ainda criança ao Brasil junto com sua mãe e seus irmãos. Era um refugiado que buscava reconstruir a vida longe dos conflitos étnicos na República Democrática do Congo que já tinham ceifado a vida de seu pai e de outros parentes.

O motivo do crime foi a cobrança dos dias trabalhados num quiosque no Posto 8, na Barra da Tijuca. R$ 200, o preço de uma vida. As câmeras de segurança do quiosque flagraram o ato criminoso: Moïse foi agredido com pedaços de madeira e tacos de beisebol por cinco pessoas durante pelo menos 15 minutos. Ele foi encontrado morto, amarrado em uma escada, como num pelourinho moderno. O crime teria acontecido na segunda-feira (24), e descoberto pela família no dia seguinte. O enterro ocorreu no último domingo (30). Desde então há grande repercussão nas redes sociais sobre o caso. A embaixada do Congo já cobrou explicações e relembrou que existem quatro casos de assassinatos de cidadãos congoleses no Brasil ainda em aberto.

Há um aumento preocupante no aumento do número de linchamentos no Brasil nos últimos tempos, indicam algumas pesquisas. O sociólogo José de Souza Martins apontou a ocorrência de um linchamento por dia no Brasil. Os dados são de 2015, e não há motivo para crer que tenham diminuído desde então. Pessoas negras não são linchadas por serem negras, mas segundo o sociólogo, "a prontidão para linchar um negro é, na maioria dos casos, maior do que para linchar um branco que tenha cometido o mesmo delito".

Esse crime brutal contra o jovem congolês não é uma exceção. Há uma crescente violência contra grupos imigrantes que fugiram das condições sociais, políticas e econômicas em seus países. Esperavam encontrar no Brasil um ambiente amistoso, hospitaleiro, para reconstruir suas vidas. Afinal, essa era a imagem vendida do país lá fora.

Não tem sido assim. Em 2015, o haitiano Fetiere Sterlin, de 33 anos, foi assassinado com golpes de faca e pedradas em Santa Catarina aos gritos de "vai embora para tua terra, criolo". A família teve de esperar seis dias para sepultá-lo. Outro haitiano, Inolus Pierrelys, 34 anos, morreu em 2019 em Manaus com tiros. Inolus vivia com outros conterrâneos que decidiram sair do Haiti após o terremoto de janeiro de 2010, que devastou a ilha. Ainda em 2019, Kerby Tingue, de 32 anos, foi morto por cinco frequentadores de uma boate em São José, município vizinho de Florianópolis (SC), por urinar do lado de fora do estabelecimento. Depois de espancado, Kerby foi jogado na frente de um caminhão que passava na BR-101. Esses são apenas alguns casos registrados, sem contar os numerosos exemplos de hostilidade esse grupo no Brasil.

Outros grupos passam pela mesma situação. Em julho de 2018, o senegalês Fallow Ndack, de 33 anos, foi esfaqueado no centro de Cascavel (PR). A comunidade senegalesa também lidou com casos explícitos de racismo. Em 2015, uma mulher atirou bananas contra um grupo de trabalhadores ambulantes no centro de Londrina (PR). A ofensora teria problemas mentais, segundo a polícia, justificativa mais do que velha para crimes dessa natureza. Em 2020, a filha de imigrantes senegaleses, Fatou Ndiaye, de 15 anos, foi alvo de ataques racistas pelos colegas de uma escola de classe média alta no Rio de Janeiro. Ou seja, os ataques não respeitam idade ou condição social, mas tem um alvo direto. Imigrantes negros.

Os venezuelanos também sofrem com a xenofobia no Brasil. Em 2018, um acampamento com centenas de imigrantes foi destruído por um grupo de brasileiros em Roraima. Depois do episódio, mais de 1.200 venezuelanos — gente que resolveu migrar para o Brasil em busca de uma chance para recomeçar a vida — resolveu deixar o país. Há, nesse caso específico, um componente político: o acirramento das relações entre o governo brasileiro e o da Venezuela. A política anti-Venezuela, levada a cabo pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) contribuiu para o aumento da hostilidade contra venezuelanos e outros grupos de imigrantes de países da América Latina não alinhados com o governo brasileiro.

A hostilidade contra africanos tem longa história no Brasil. Nunca é demais lembrar que a história do Brasil é fundada na escravidão. O tráfico transatlântico de africanos escravizados trouxe somente para o Brasil mais de cinco milhões de homens, mulheres e crianças, segundo dados de uma plataforma digital que quantifica os números do comércio negreiro. No século 19, depois da Revolta dos Malês — um movimento de resistência na Bahia protagonizado por africanos de origem iorubá, da África Ocidental — o governo local estabeleceu uma política de deportação para a África daqueles envolvidos no episódio ou mesmo que representassem algum perigo na cabeça das autoridades brasileiras. Muita gente retornou ao continente africano fugindo dessa repressão, que se estendeu nas décadas seguintes. Aumento dos impostos, repressão às práticas religiosas foram artifícios usados para retirar esse grupo de pessoas indesejadas do Brasil. Mesmo que estes tenham sido trazidos para o Brasil contra a sua vontade.

Com o final do tráfico de africanos escravizados, uma outra política de imigração se estabeleceu no país. Imigrantes europeus, como os italianos, que formavam uma comunidade importante em São Paulo, eram cada vez mais numerosos no Brasil depois de 1850. Os africanos e seus descendentes, por sua vez, foram empurrados cada vez mais para a subalternidade, que se arrasta até os nossos dias. Em 1891, após a abolição da escravidão, o governo brasileiro proibiu a entrada de amarelos e negros subsidiados pelo Estado, punindo os donos dos navios que transportassem esses trabalhadores. A imprensa da época também exaltava as qualidades dos imigrantes italianos e alemães, contribuindo para afirmar as ideias eugenistas de hierarquia entre as "raças". Esse modelo imigratório também obedecia a uma política de embranquecimento da sociedade brasileira após a escravidão. E ainda hoje há uma distinção evidente que se expressa no tratamento dado a imigrantes e aos refugiados. Principalmente se estes últimos forem negros.

Esses episódios escancaram a farsa da cordialidade e hospitalidade brasileira, sobretudo a imigrantes negros. Há muito de xenofobia e muito mais de racismo no assassinato de Moïse e em todos os outros episódios aqui relatados. Em vários ataques aos haitianos era possível ouvir os criminosos — pois isso que são, criminosos — defenderem a ideia de que eles estavam lá para "roubar os empregos" dos brasileiros. Esse tipo de argumento se baseia na deterioração das condições econômicas do Brasil a partir de 2015. Para o ano de 2021, a taxa de desemprego atingiu 13,5 milhões de brasileiros (12,6%) no terceiro semestre, segundo dados do IBGE.

Nada mais delirante. Relatório do ObMigra (Observatório das Migrações Internacionais) registrou a diminuição dos postos formais de trabalho para imigrantes em 2016, 13% menor do que no ano anterior. A maioria dos imigrantes e refugiados haitianos, congoleses, senegaleses, ganeses e nigerianos vive na informalidade, trabalhando como ambulantes, escapando das apreensões das mercadorias e da violência dos agentes públicos. Está claro que o problema é outro. O racismo contra imigrantes negros. Afinal, quantos casos semelhantes contra imigrantes europeus assistimos recentemente?

É preciso discutir de maneira mais direta o problema da política imigratória brasileira para refugiados. Não basta apenas conceder vistos de entradas para pessoas que buscam uma vida melhor no Brasil. É preciso acompanhar de perto esses homens, mulheres e crianças, oferecendo suporte psicológico e social, com moradia e alimentação. A repetição da barbárie cotidiana contra pessoas como Moïse só demonstra que o rótulo de um país acolhedor e cordial, um país de todos, não se sustenta mais. Se é que algum dia se sustentou. Justiça para Moïse!

*Ana Flávia Magalhães, Carlos da Silva Jr., Fernanda Oliveira, Mariléa Almeida e Patricia Alves-Melo são integrantes da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros